Livraria da Folha

 
08/02/2010 - 17h57

Reclusão de Salinger era traço genuíno de sua personalidade, diz tradutor

PAULA DUME
colaboração para a Livraria da Folha

Em 1951, ano do lançamento de "O Apanhador no Campo de Centeio", J.D. Salinger já havia publicado 27 contos em diversas revistas, como "Collier's", "The Saturday Evening Post", "Cosmopolitan", "Story", "Mademoiselle" e "The New Yorker".

Divulgação
Jorio Dauster traduziu 23 obras, dentre delas "Lolita" e "Indignação"
Jorio Dauster traduziu 23 obras, dentre elas "Lolita" e "Indignação"

Seis deles integraram "Nove Estórias", publicado em 1953. A partir daí, as aparições de Salinger tornaram-se cada vez mais raras. Seguiram-se os volumes "Franny" e "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira" (1955), "Zooey" (1957), "Seymour, uma Apresentação" (1959), e "Hapworth 16, 1924" (junho de 1965).

Inversamente proporcional ao desaparecimento escrito e físico, a fama de Salinger crescia. Jovens e adultos se identificavam com Holden Caufield --protagonista de "O Apanhador no Campo de Centeio" -- e os precipícios que acompanhavam seus passos. E quanto aos demais textos? Perderam-se pelas ruas norte-americanas e chegaram a ser vendidos e cobiçados de forma inusitada anos depois.

Em entrevista à Livraria da Folha, Jorio Dauster --um dos tradutores de "O Apanhador no Campo de Centeio", "Nove Estórias" e "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira" -- explicou o processo que levou ele e os amigos Álvaro Alencar e Antônio Rocha a se empenharem na transcrição de um dos maiores clássicos da literatura do século 20. Aguarda-se a reedição do título no exterior, nos próximos meses.

"A tradução de "O Apanhador no Campo de Centeio" levou uns dois anos. Era feita por pura distração e passávamos mais tempo discutindo o trabalho em volta de um chope do que batendo à máquina (não havendo computadores naquela época)", revelou Dauster.

Com Philip Roth ("Indignação"), Vladimir Nabokov ("Lolita", entre outras obras), Thomas Pynchon ("O Leilão do Lote 49") e Ian McEwan ("O Jardim de Cimento"), dentre outros em seu currículo literário de 23 traduções e duas no prelo ("Amor Infindo", de McEwan, e "Contos", de John Cheever, ambas pela Companhia das Letras), Dauster disse que uma obra literária de ficção é tão boa quanto o são seus protagonistas, sejam eles diabólicos, como o Humbert Humbert de "Lolita", ou patéticos, como o Pnin do livro homônimo.

Questionado sobre Salinger ser um recluso ou portar-se desta maneira para atrair e concentrar mais olhares sobre si, o tradutor acredita que ninguém é capaz de manter uma pose por meio século. "Ele se dizia 'neste' mundo, mas não 'deste' mundo, e de fato tinha horror à publicidade (...) Sua repugnância às luzes da ribalta era talvez o que houvesse de mais genuíno em sua personalidade", afirmou.

Arquivo Folha
J.D.Salinger, que vivia recluso e era avesso a exposição pública, é flagrado saindo de um supermercado em 1988
J.D.Salinger, que vivia recluso e era avesso a exposição pública, é flagrado saindo de um supermercado em 1988

*

Livraria da Folha: Quando o senhor leu "O Apanhador no Campo de Centeio" pela primeira vez? Como surgiu o convite para traduzi-lo e como se estabeleceu a parceria com Álvaro Alencar e Antônio Rocha?

Jorio Dauster: Li em 1957, numa edição de bolso, quando passava um ano em Washington, estudando inglês e economia. Ao voltar para o Brasil, entrei para o Itamaraty e lá encontrei um amigo de infância, Álvaro Alencar, quando descobrimos nosso amor comum pelo "Catcher in the Rye" e o desejo de traduzi-lo. Enquanto discutíamos como e quando fazê-lo, soubemos que o Antônio Rocha, alguns anos mais avançado do que nós na carreira, trabalhava numa versão da obra, surgindo daí a ideia pouco comum de um trabalho a seis mãos.

Livraria da Folha: Quando vocês traduziram "O Apanhador no Campo de Centeio" e "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira", utilizaram outros textos sobre o autor para conhecerem suas figuras de linguagem e o modo como trabalha com os jogos estilísticos?

Dauster: Ao traduzirmos "O Apanhador no Campo de Centeio" não havíamos lido nenhum outro livro do Salinger (que só permitiu a publicação de quatro obras em toda a sua vida), o que não fez falta porque o livro, representando o depoimento gravado de um jovem, tem um registro absolutamente coloquial que o autor não voltou a utilizar - embora sua maestria em matéria de diálogo estivesse sempre presente em tudo que escreveu.

Livraria da Folha: Devido às restrições impostas por Salinger, como tradução literal do título, vocês se sentiram intimidados com o texto? Como lidaram com isso durante o trabalho?

Dauster: A tradução foi feita por nossa conta e risco, como um trabalho de amor, sem que ao menos houvéssemos entrado em contato com qualquer editora. Assim, não sofremos nenhuma restrição, antes ou depois, excetuada a exigência surgida quando da publicação de que o título fosse vertido literalmente. E isso porque o Salinger, com boas razões, havia odiado os títulos dados em várias línguas, tais como "Agulha no Palheiro", em Portugal, e "El Cazador Oculto", na Espanha. Nossa sugestão, "A Sentinela do Abismo", ao menos havia sido tirada do contexto certo e se adequava ao espírito do livro, porém hoje creio que a estranheza do título imposto contribuiu para aumentar o "recall" da obra.

Livraria da Folha: Vocês levaram quanto tempo para traduzir as obras de Salinger? Digo de quando receberam o texto até as revisões finais.

Dauster: A tradução de "O Apanhador no Campo de Centeio" levou uns dois anos. Era feita por pura distração e passávamos mais tempo discutindo o trabalho em volta de um chope do que batendo à máquina (não havendo computadores naquela época). Em 1964, fiquei encostado seis meses em casa após o golpe militar e, como meus colegas já haviam seguido para o exterior, tive todo o tempo do mundo para burilar o texto e "homogeneizá-lo", garantindo a absoluta uniformidade do estilo. Só depois de pronto, procurei o Rubem Braga, que era sócio de Fernando Sabino e Walter Acosta na Editora do Autor, oferecendo-lhe o livro que - veja bem como era amadorístico o mercado livreiro no Brasil - já era sucesso nos Estados Unidos há mais de dez anos. Braga não tinha ideia de quem fosse Salinger, mas Sabino já ouvira falar dele e Acosta em breve se tornou fã. O que cada um de nós três recebeu não dava para comprar um par de sapatos. O êxito do livro fez com que Acosta nos pedisse que traduzíssemos as demais obras do autor, o que não pudemos aceitar pelas exigências de tempo, excetuados os contos que foram vertidos ao longo de um ano.

Livraria da Folha: Se houver nova edição do livro no Brasil pela Editora do Autor, além de rever algumas expressões, você gostaria de reescrever alguma passagem em específico? Por qual motivo?

Dauster: Faz bastante tempo desde que reli o livro, tendo ficado com a impressão de que o texto atravessou bem essas quatro décadas e pouco. Como se trata de um linguajar coloquial, é possível que uma ou outra expressão juvenil, uma ou outra gíria, tenha ficado defasada, embora, já lá atrás, nós tivemos a preocupação de usar as construções que tinham mais "antiguidade" no vernáculo, evitando os modismos.

Livraria da Folha: Em biografia, a filha mais velha de Salinger disse que o pai era egoísta e cruel, e como os demais, uma pessoa miserável. Enquanto traduzia, você percebeu alguns indícios da personalidade do autor que refletiam em seus personagens?

Dauster: O livro da filha realmente o retrata de forma cruel, mas o filho, por exemplo, a contesta em muitas afirmações. Não há dúvida de que Salinger era uma pessoa estranhíssima, um espírito conturbado, como o prova mais de meio século de reclusão. Alguns atribuem isso, pelo menos em parte, às duríssimas experiências que teve como combatente na Segunda Guerra Mundial (desembarque no Dia D, liberação de Paris, abertura de um campo de concentração etc), que lhe valeram uma internação por motivos psiquiátricos ainda na Alemanha. A preocupação de Salinger com a filosofia oriental, sobretudo com o zen-budismo, se reflete nas obras que cuidam da família Glass (alguns contos, "Franny e Zooey" e "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira"), mas não há o menor traço de crueldade em nenhum de seus escritos.

Livraria da Folha: Você chegou a ler "Abandonada no Campo de Centeio"? Qual sua opinião sobre essa obra polêmica?

Dauster: Não, fiz questão de não ler porque me cheirou a exploração. Aliás, creio que há certo interesse em conhecer a biografia do autor para compreender melhor o contexto cultural e histórico que moldou seu pensamento. Mas isso não é estritamente necessário para que se aprecie seus escritos - e há mesmo quem diga que o risco de saber que o autor foi um tremendo mau caráter pode nos impedir de desfrutar de uma obra de grande qualidade artística.

Livraria da Folha: Salinger era mesmo um recluso ou, na verdade, portava-se deste modo para atrair e concentrar mais olhares sobre si?

Dauster: Ninguém é capaz de manter uma pose por meio século. Ele se dizia "neste" mundo, mas não "deste" mundo, e de fato tinha horror à publicidade, exigindo muito cedo que fossem retiradas das capas de seus livros as fotografias e os dados biográficos. Salinger não pode ser definido como um ermitão porque teve alguns relacionamentos ao longo dessas décadas e vez por outra era visto na cidadezinha de Cornish, New Hampshire, onde ficava sua propriedade rural. Mas sua repugnância às luzes da ribalta era talvez o que houvesse de mais genuíno em sua personalidade.

Livraria da Folha: Quais obras você gostaria de ter traduzido?

Dauster: Como aconteceu com "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira", eu gostaria de traduzir "Franny e Zooey", completando assim a obra de Salinger. Gostaria também de continuar a traduzir Nabokov, conquanto acredite que já verti suas melhores obras - "Lolita", "Fogo Pálido", "Pnin" e "Ada". Cada vez sinto mais prazer em trabalhar com McEwan.

 
Voltar ao topo da página