Livraria da Folha

 
10/02/2010 - 14h51

Vargas Llosa narra história de um prostíbulo localizado no Peru; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Texto de Llosa tem influências de William Faulkner e Gustave Flaubert
Texto de Llosa tem influências de William Faulkner e Gustave Flaubert

Com influências de William Faulkner e Gustave Flaubert, Mario Vargas Llosa escreveu, aos 29 anos, "A Casa Verde" (Alfaguara, 2010), seu segundo romance. O escritor peruano privilegiou a voz do narrador e a mesclou à fala dos personagens.

Publicado originalmente em 1966, as ações do passado e do presente se intercalam em um fluxo inovador de escrita e de intelecção. Vargas Llosa entrelaça a voz de diferentes personagens para narrar a história de um prostíbulo --batizado de "A Casa Verde"-- montado perto de uma das cidades mais isoladas do Peru, a pequena Piúra.

O forasteiro Don Anselmo é o responsável pela construção do bordel. A casa de dois andares, com diversos cômodos e pintada de verde mudará a rotina dos habitantes da região. Em pouco tempo, o vilarejo descobre as verdadeiras intenções desse homem.

À época da publicação, o volume recebeu o Prêmio da Crítica, na Espanha, e, em 1967, o Prêmio Internacional de Literatura Rómulo Gallegos, na Venezuela, como melhor romance em língua espanhola.

Leia abaixo um trecho extraído do capítulo inicial de "A Casa Verde".

*

O sargento dá uma olhada na madre Patrocinio e a mosca continua lá. A lancha cabeceia sobre as águas turvas, entre duas muralhas de árvores que exalam um bafo ardente, pegajoso. Enovelados debaixo do teto de folhas de palmeira, nus da cintura para cima, os guardas dormem protegidos pelo esverdeado, amarelado sol do meio-dia: a cabeça do Pequeno está sobre a barriga do Pesado, o Louro sua em bicas, o Escuro grunhe de boca aberta. Uma nuvenzinha de borrachudos escolta a lancha, entre os corpos evoluem borboletas, vespas, mutucas. O motor ronca com regularidade, engasga, ronca de novo e o piloto Nieves empunha o leme com a mão esquerda, com a direita fuma e seu rosto lustroso permanece inalterável sob o chapéu de palha. Esses selvagens não eram normais, por que não suavam como outros cristãos? Empertigada na popa, a madre Angélica está de olhos fechados, em seu rosto há pelo menos mil rugas, às vezes põe uma pontinha da língua para fora, suga o suor do bigode e cospe. Pobre velhinha, não aguentava o tranco. A mosca bate as asinhas azuis, decola da testa rosada da madre Patrocinio com um suave impulso, some riscando círculos na luz branca e o piloto ia desligar o motor, sargento, já estavam chegando, atrás dessa bocaina vinha Chicais. Mas o coração do sargento dizia não vamos encontrar ninguém. O ruído do motor se interrompe, as madres e os guardas abrem os olhos, levantam as cabeças, olham. De pé, o piloto Nieves gira o leme à direita e à esquerda, a lancha se aproxima silenciosamente da margem, os guardas se levantam, põem as camisas, os quepes, ajeitam as perneiras. A paliçada vegetal da margem direita se interrompe bruscamente quando ultrapassam a curva do rio e há um barranco, um breve parêntese de terra vermelha que desce até uma minúscula enseada de lodo, pedregulhos, moitas de bambu e de samambaias. Não se vê nenhuma canoa na margem, nenhuma silhueta humana no barran co. A embarcação fica imóvel, Nieves e os guardas saltam, chapinhando no lodo cor de chumbo. Aquilo era um cemitério, o coração não enganava, os mangaches tinham razão. O sargento está debruçado na proa, o piloto e os guardas arrastam a lancha até a terra seca. Que ajudem as madrecitas, façam cadeirinha para elas não se molharem. A madre Angélica vai séria nos braços do Escuro e do Pesado, a madre Patrocinio hesita quando o Pequeno e o Louro unem suas mãos para recebê-la e, deixando-se cair, fica vermelha como um camarão. Os guardas atravessam a praia cambaleando, deixam as madres onde termina o lodo. O sargento pula, chega ao pé do barranco e a madre Angélica já está subindo a encosta, muito decidida, seguida pela madre Patrocinio, as duas engatinhando, desaparecendo entre redemoinhos de poeira ruiva. A terra do barranco é fofa, cede a cada passo, o sargento e os guardas avançam afundando até os joelhos, agachados, sufocados pela poeira, com o lenço apertado contra a boca, o Pesado espirrando e cuspindo. No topo se espanam os uniformes e o sargento olha: uma clareira circular, um punhado de cabanas de teto cônico, pequenos roçados de mandioca e de banana e, em volta, mato fechado. Entre as cabanas, arvorezinhas com sacos ovais pendurados nos galhos: ninhos de xexéus. Ele tinha avisado, 'madre Angélica, lembre-se, nem uma alma, estão vendo. Mas a madre Angélica anda de um lado para outro, entra numa cabana, sai e mete a cabeça na cabana ao lado, enxota as moscas a tapas, não para um segundo e, assim, de longe, esmaecida pela poeira, não é uma anciã e sim um hábito ambulante, ereto, uma sombra enérgica. Em contrapartida, a madre Patrocinio está imóvel, com as mãos escondidas no hábito, e seus olhos percorrem o povoado vazio uma e outra vez. Uns galhos se mexem e se ouvem grasnidos, uma esquadrilha de asas verdes, bicos negros e peitilhos azuis revoa sonoramente sobre as cabanas desertas de Chicais, os guardas e as madres os acompanham até que são engolidos pelo mato, sua gritaria ainda dura um pouco mais. Havia papagaios, era bom saber para o caso de faltar comida. Mas davam disenteria, madre, quer dizer, a barriga ficava solta. No barranco aparece um chapéu de palha, o rosto queimado do piloto Nieves: então os aguarunas se assustaram, madrecitas. Que teimosas, por que não lhe deram ouvidos. A madre Angélica se aproxima, examina aqui e ali com os olhinhos enrugados, e suas mãos nodosas, rígidas, cheias de pintas castanhas se agitam na cara do sargento: estavam por perto, não tinham levado as suas coisas, precisavam esperar até que voltassem. Os guardas se entreolham, o sargento acende um cigarro, dois xexéus vão e vêm pelo ar, suas penas negras e douradas reluzem com brilhos úmidos. Passarinhos também, havia de tudo em Chicais. Menos aguarunas, e o Pesado ri. Por que não chegamos de supetão?, a madre Angélica ofega, por acaso não os conhecia, madrecita?, o penacho de pelos brancos do seu queixo treme suavemente, eles tinham medo dos cristãos e se escondiam, nem em sonhos voltariam enquanto estivessem aqui não veriam nem sombra deles. Pequena, roliça, a madre Patrocinio também está ali, entre o Louro e o Escuro. Mas ano passado não se esconderam, foram recebê-los e até lhes deram um tambaqui fresquinho, o sargento não se lembrava? Mas na época eles não sabiam, madre Patrocinio, agora sim, entenda. Os guardas e o piloto Nieves se sentam no chão, tiram os sapatos, o Escuro abre o cantil, bebe e suspira. A madre Angélica ergue a cabeça: montem as barracas, sargento, um rosto vincado, ponham os mosquiteiros, um olhar líquido, iam esperar que voltassem, uma voz alquebrada, e não faça essa cara, ela tinha experiência. O sargento joga fora o cigarro, enterra-o com o pé, já ouviram, rapazes, que se mexessem. E então se ouve um cacarejo e uma moita cospe uma galinha, o Louro e o Pequeno dão um grito de júbilo, preta, correm atrás dela, com pintas brancas, capturam-na e os olhos da madre Angélica faíscam, bandidos, o que estão fazendo, seu punho vibra no ar. Por acaso era deles?, que a soltassem, e o sargento que a soltassem mas, madres, se iam mesmo ficar lá precisavam comer, não queriam passar fome. A madre Angélica não ia permitir abusos, que confiança podiam ter neles se roubavam seus bichinhos? E a madre Patrocinio concorda, sargento, roubar era ofender a Deus, com seu rosto redondo e saudável, não conhecia os mandamentos? A galinha, no chão, cacareja, cata pulgas nas axilas, foge rebolando e o sargento encolhe os ombros: por que tinham ilusões se elas os conheciam tanto ou mais que ele. Os guardas vão até o barranco, nas árvores os papagaios e os xexéus estão gritando de novo, há zumbidos de insetos, uma brisa leve agita as folhas de jarina dos tetos de Chicais. O sargento afrouxa as perneiras, resmunga entre os dentes, parece estar emburrado e o piloto Nieves lhe dá uma palmada no ombro, sargento: não fique de mau humor, leve as coisas com calma. E o sargento aponta furtivamente para as madres, dom Adrián, esse tipo de servicinho lhe doía na alma.

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