Livraria da Folha

 
19/02/2010 - 14h28

Saiba por que mulheres são mais suscetíveis a ataques de fantasmas

da Livraria da Folha

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Histórias foram escritas por 31 escritoras dos séculos 19, 20 e 21
Histórias foram escritas por 31 escritoras dos séculos 19, 20 e 21

Mulheres e fantasmas combinam, de certa forma. Não é à toa que grande parte das melhores histórias de mistério e horror aliam uma mulher tão brava quanto apavorada, envolta a acontecimentos inexplicáveis. Ou então uma figura feminina atormentada é a causa de eventos assustadores.

Em "O Grande Livro das Histórias de Fantasmas", 31 escritoras britânicas de peso --as mais importantes dos séculos 19 a 21-- apresentam 34 histórias sobre fantasmas.

Organizado pelo pesquisador literário Richard Dalby, o volume tem em seu currículo nomes como Charlotte Brontë ("Jane Eyre"), May Sinclair, Edith Wharton ("Os Bucaneiros"), Ruth Rendell ("Carne Trêmula"), A. S. Byatt ("Possessão"), Angela Carter ("O Quarto do Barba Azul"), entre outros.

De narrativas tradicionais e estudos psicológicos modernos a clássicos contos de casas mal-assombradas e fábulas de mistério, as autoras tecem tramas antológicas que investigam, por vezes, como mulheres lidam com a paixão, a angústia e a raiva. E tudo isso, com fantasmas psicológicos envolvidos. Mulheres à beira de um ataque de nervos? Não, de fantasmas.

Leia abaixo o conto "Napoleão e o Espectro", de Charlotte Brontë.

*

Bem, como eu estava dizendo, o imperador foi dormir.

- Chevalier - diz ele ao seu camareiro -, abaixe as cortinas e feche a janela antes de deixar o quarto.

Chevalier fez o que lhe ordenaram e, então, pegando seu castiçal, saiu.

Poucos minutos depois, o imperador sentiu o travesseiro ficar muito duro e se levantou para afofá-lo. Ao fazer isso ouviu um farfalhar suave na cabeceira da cama. Sua Majestade ficou atenta, mas tudo estava em silêncio quando voltou a se deitar.

Mal havia se acomodado numa atitude tranquila de repouso, foi perturbado por uma sensação de sede. Erguendo-se no cotovelo, pegou um copo de limonada na mesinha ao lado da cama. Refrescou-se com alguns goles. Enquanto devolvia a taça ao seu lugar, ouviu um grunhido profundo vindo de um armário num canto do aposento.

- Quem está aí? - gritou o imperador, agarrando suas pistolas. - Fale, ou eu estouro seus miolos.

O único resultado dessa ameaça foi uma risada curta, aguda, e depois um silêncio mortal.

O imperador pulou do leito e, jogando às pressas sobre si um robe de chambre que estava pendurado no espaldar de uma cadeira, encaminhou-se desafiador para o guarda-roupa assombrado. Ao abrir a porta, algo farfalhou.

Ele saltou para a frente, espada na mão. Não apareceu ninguém, nem mesmo uma substância qualquer, e o farfalhar - isso ficou patente - originara-se com a queda de um manto que fora pendurado num gancho na porta.

Meio envergonhado de si mesmo, ele voltou para a cama.

Exatamente quando mais uma vez ele estava prestes a fechar os olhos, a luz das três velas, que ardiam num candelabro de prata sobre o aparador da lareira, atenuou-se subitamente. Ele olhou para cima. Uma sombra negra e opaca estava obscurecendo a luz. Suando de terror, o imperador estendeu a mão para agarrar a corda da sineta, mas um ser invisível arrebatou-a rudemente e no mesmo instante a sombra agourenta desapareceu.

- Ora! - exclamou Napoleão -, não foi nada mais do que uma ilusão de ótica.
- Será? - sussurrou próximo ao seu ouvido uma voz cava em tons profundos e misteriosos. - Foi uma ilusão, imperador da França? Não!

Tudo o que ouviste e viste chama-se triste realidade premonitória. Ergue-te, tu que levantas o Emblema da Águia! Desperta, ó empunhador do Cetro da Flor-de-Lis! Segue-me, Napoleão, e verás mais.

Quando a voz cessou, um vulto mostrou-se à sua vista perplexa. Era o vulto de um homem alto, magro, vestido num sobretudo azul com renda dourada. Usava uma gravata preta muito apertada no pescoço e presa por dois pauzinhos atrás das orelhas. A tez era lívida; a língua despontava entre os dentes e os olhos completamente vidrados e injetados saltavam das órbitas com assustadora proeminência.

- Mon Dieu! - exclamou o imperador. - O que estou vendo? Espectro, de onde vieste?

A aparição não falou, mas deslizando para a frente e com o dedo erguido chamou Napoleão para que ele a seguisse.

Dominado por uma misteriosa influência que o privou da capacidade de pensar e de agir por si mesmo, ele obedeceu em silêncio.

A sólida parede do aposento abriu-se quando eles se aproximaram, e à sua passagem fechou-se atrás deles com um barulho de trovão.

Eles estariam na escuridão total, não fosse por uma tênue luz que brilhava em torno do fantasma e revelava as paredes úmidas de uma passagem longa, abobadada. Prosseguiram por ela em muda rapidez. Pouco depois uma brisa fresca, que soprava lamuriosa para o alto da abóbada, anunciou que eles se aproximavam do espaço aberto.

Logo chegaram a esse espaço e Nap encontrou-se numa das principais ruas de Paris.

- Espírito Valoroso - disse ele trêmulo no frio ar noturno -, permite-me voltar e abrigar-me com mais roupa. Estarei de volta num minuto.
- Em frente - respondeu firmemente seu companheiro.

Ele se sentiu compelido a obedecer, apesar da crescente indignação que quase o engasgava.

Prosseguiram pelas ruas desertas até chegarem a uma casa majestosa às margens do Sena. Ali o Espectro parou, os portões se abriram para recebê-los e eles entraram num amplo vestíbulo de mármore parcialmente velado por uma cortina corrida de um lado a outro, por cujas pregas semitransparentes se via uma intensa luz que queimava com um brilho deslumbrante.

Uma fileira de delicadas figuras femininas ricamente vestidas postava-se diante dessa tela. Elas usavam na cabeça guirlandas das mais belas flores, mas seu rosto estava oculto por horríveis máscaras que representavam cabeças da morte.

- O que é essa coleção de múmias? - gritou o imperador, esforçando-se por afastar os grilhões mentais pelos quais estava preso muito a contragosto. - Onde é que eu estou, e por que fui trazido aqui?

- Silêncio - disse o guia, deixando pender ainda mais sua língua preta e sanguinolenta. - Silêncio, se queres escapar à morte imediata.

O imperador teria respondido, com sua coragem natural, superando o espanto temporário a que inicialmente sucumbira, mas exatamente nesse instante acordes de uma música selvagem, sobrenatural, iniciaram um crescendo atrás da enorme cortina, que se agitava de um lado para outro e inflava lentamente para fora como se agitada por uma comoção interna ou uma luta de ventos ondulantes. Ao mesmo tempo uma combinação avassaladora de odores de decomposição mortal misturados aos melhores perfumes do Oriente invadiu o vestíbulo assombrado.

Um murmúrio de muitas vozes foi então ouvido à distância e alguma coisa agarrou ansiosamente seu braço por trás.

Ele se virou num ímpeto. Seus olhos encontraram a conhecida fisionomia de Marie Louise.

- O quê? Tu também estás neste lugar infernal? - perguntou ele. - Por que vieste para cá?
- Vossa Majestade me permitiria fazer a mesma pergunta? - disse a imperatriz sorrindo.

Ele não respondeu; a perplexidade impediu-o de fazê-lo.

Agora não havia uma cortina entre ele e a luz. Esta fora retirada como se por um passe de mágica, e o esplêndido lustre parecia suspenso sobre a cabeça do imperador. Aglomerações de senhoras, em trajes soberbos, mas sem as máscaras do rosto da morte, estavam por ali, de pé, e uma proporção adequada de alegres cavaleiros se misturava a elas. A música ainda ressoava, mas se cuidou para que ela viesse de um grupo de mortais colocados numa orquestra que estava bem próxima. O ar tinha ainda a fragrância de incenso, porém era incenso sem mistura com fedor.

- Mon Dieu! - gritou o imperador. - Como foi que tudo isso aconteceu? Onde está Piche?
- Piche? - respondeu a imperatriz. - O que Vossa Majestade quer dizer? Quer deixar o apartamento e se retirar para repousar?
- Deixar o apartamento? Por quê, onde estou?
- Na minha sala de visitas particular, cercado por algumas pessoas da corte a quem convidei esta noite para um baile. Vossa Majestade entrou poucos minutos atrás em trajes de dormir, com os olhos fixos e arregalados.

Imagino, pelo assombro estampado agora em seu rosto, que Vossa Majestade estava caminhando adormecido.

O imperador entrou imediatamente num acesso de catalepsia, que perdurou por toda aquela noite e a maior parte do dia seguinte.

 
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