Livraria da Folha

 
20/02/2010 - 20h49

Autora afirma que nem toda política pública é social; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Definições sobre política pública, democracia, Estado e governo
Definições sobre política pública, democracia, Estado e governo

"Ao encarar os problemas 'dos outros' como 'de todos nós', visto que são problemas públicos, abrimos uma janela de oportunidade para que as políticas públicas que produzimos façam, de fato, diferença para a sociedade em que todos vivemos", afirma Marta M. Assumpção Rodrigues no prefácio do livro "Folha Explica: Políticas Públicas", lançado este mês pela Publifolha.

No volume, a autora --Ph.D. em Ciência Política e professora da USP-- propõe possíveis formas de concretizar políticas capazes de promover sociedades mais igualitárias e livres, e reúne conceitos básicos para a definição de política pública, tais como a própria política, democracia, Estado e governo.

O livro está dividido em três capítulos. O primeiro apresenta alguns conceitos básicos, como política, poder e Estado, com o objetivo de introduzir o leitor no estudo das políticas públicas como uma área constitutiva da ciência política. O segundo trata o desenvolvimento do estudo das políticas públicas como área do conhecimento. E o último, discute o tema das políticas sociais no âmbito do Estado de Bem-Estar Social.

Marta trata das políticas públicas de forma geral, e não pelas políticas setoriais específicas, como saúde, educação, saneamento, habitação e segurança. Ela enfatiza que as políticas sociais constituem um subconjunto de um conjunto maior que denominamos de políticas públicas. "Toda a política social é uma política pública, mas nem toda a política pública é uma política social", esclarece.

Leia trecho abaixo, extraído do livro.

*

CICLOS (OU PROCESSOS DE GESTÃO) DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Mais recentemente, o modelo dos ciclos das políticas públicas vem sendo amplamente discutido pelos especialistas como forma simples de compreender o processo de formação das políticas39. É uma interpretação que serve muito mais como recurso de análise do que como referência a um fato real.

De acordo com esse modelo, as políticas públicas são concebidas como um processo, composto por um conjunto de atividades ("etapas" ou "estágios") que visam atender às demandas e interesses da sociedade. Essas atividades constituem-se de sistemas complexos de decisões e ações, tomadas por parte da autoridade legítima (ou instituições governamentais), de acordo com a lei. Entre essas atividades estão: preparação da decisão política, agenda setting, formulação, implementação, monitoramento e avaliação.

Preparação da decisão política

A primeira atividade de Governo refere-se à formação da questão a ser resolvida. Nessa etapa da política pública, o Governo decide enfrentar um determinado problema e buscar algum tipo de solução (ou conforto) para uma situação que produz privação, necessidade ou não satisfação40. Como a capacidade do Governo para incluir itens na agenda é limitada, já que os recursos são restritos e como, por isso mesmo, sempre haverá competição sobre a definição do problema e sobre quais diferentes grupos (ou diferentes visões) devem ser mobilizados para que a ação do Governo conte com o seu apoio, a perspectiva do ciclo das políticas reserva um estágio específico - elaboração da questão pública/preparação da decisão política - para que decisões como essas sejam tomadas.

As questões relativas a essa fase são: o problema existe? O Governo deve se envolver nesse problema? De que maneira? Há mobilização suficiente (em termos de capital social, econômico e político) para incluir o problema na agenda do Governo?

O estágio constitui um momento fundamental do processo decisório na medida em que, nele, diversos atores entram em confronto para escolher quais problemas serão, efetivamente, incluídos na agenda governamental.

Agenda setting

O segundo estágio do processo de formação das políticas públicas diz respeito à formação da agenda. Nesse momento, o problema (sobre o qual o Governo decidiu agir) torna-se uma questão política (issue) - isto é, adquire status de "problema público" - e as decisões sobre esse problema resultarão, efetivamente, no desenho de políticas ou programas que deverão ser implementados (na etapa seguinte). A pergunta que merece reflexão aqui é: afinal, por que alguns problemas ganham espaço na agenda política do Governo e outros não?

Por exemplo, guerras e crises econômicas profundas (como aquela vivenciada no período da Grande Depressão, nos anos 1930, ou como essa que estourou nos Estados Unidos, em outubro de 2009, e que levou um grande número de países à recessão) acabam por formatar quase que automaticamente a agenda política dos diversos Governos. Dizemos "quase automaticamente" porque questões como essas dependem também de outro fator importante para ganhar espaço na agenda pública: a qualidade da liderança política.

Um exemplo paradigmático de liderança política foi Franklin D. Roosevelt, que ocupou a presidência dos Estados Unidos entre 1932 e 1945. Em dois momentos importantes da história norte-americana, Roosevelt demonstrou força política suficiente para aproveitar a "janela de oportunidade"41 aberta pela Grande Depressão (anos 1930) e pela Segunda Grande Guerra para convencer o Congresso norte-americano, no primeiro caso, a implementar o programa de reconstrução nacional conhecido como New Deal (Novo Acordo) e, no segundo, para mobilizar não apenas o Congresso, mas também a sociedade norte-americana sobre a necessidade de interferência do seu país para a defesa da paz na Europa.

Assim, evidencia-se que em tempos de crise e de guerras, as variáveis tempo, senso de oportunidade e liderança são cruciais para a formação da agenda pública, que está condicionada não só pelo fluxo decisório, mas também pelas expectativas sociais. São exatamente essas variáveis que compõem o modelo de "correntes múltiplas" (multiple streams) de Kingdon42, isto é, a combinação de um problema, um fluxo político e um fluxo da política pública (formação da agenda governamental), catalisada pela ação empreendedora de um líder político ou empreendedor público.

Inspirado no modelo "lata de lixo" (garbage can)43 - segundo o qual as escolhas de políticas públicas são feitas como se as alternativas estivessem todas numa "lata de lixo" -, para Kingdon os produtos de políticas públicas são uma mistura de múltiplas correntes. Afinal, diz ele, as pessoas trabalham em problemas apenas quando uma combinação especial e particular de problemas-soluções-participantes-escolhas-alternativas torna isso possível44. Da combinação desses elementos, abre-se uma janela de oportunidade para a ação do Governo formatar a agenda pública (agenda settting). Nessa fase, o Governo deve agir instantaneamente, caso contrário, é preciso aguardar pela abertura de uma nova janela de oportunidade, que inclui, como sabemos, um longo processo.

Formulação

No estágio seguinte, o da formulação de políticas públicas, a discussão passa a girar em torno do desenvolvimento de cursos de ações aceitáveis e pertinentes para lidar com um determinado problema público. Nesse momento, o Governo traduz a questão que entrou na agenda pública em política (isto é, desenha o programa/política e apresenta a proposta para solucionar tal questão), definindo seus objetivos e marcos jurídico, administrativo e financeiro a priori.

A construção da solução para um determinado problema implica, em primeiro lugar, a realização de um diagnóstico (que consiste no levantamento, análise e disseminação de informação sobre o problema), além da identificação e desenvolvimento de alternativas. Quando as alternativas são formuladas, transformam-se em expectativa. E é nesse momento que diversos atores se mobilizam para a formação de coalizões (intra e extragovernamentais) de compromisso, negociação e decisão, que preparam o ambiente (econômico, político e técnico) favorável para fazer com que a política saia do papel e funcione efetivamente, construindo uma consciência coletiva sobre a necessidade de se enfrentar o problema.

Em suma, para que o programa/política saia do papel, é preciso interpretar o ambiente para planejar/organizar as ações, decidir sobre quais os benefícios/serviços que se pretende implementar, e de onde serão extraídos os recursos para sua implementação. Nessa fase desenvolve-se apoio político à política em pauta de maneira que ela seja autorizada e legítima.

Implementação

O próximo estágio diz respeito à implementação da política pública, que significa, em termos gerais, a aplicação da política pela máquina burocrática de Governo. Essa etapa refere-se também ao estágio de planejamento administrativo e de recursos humanos do processo político. Existem tempo e recursos (materiais e humanos) suficientes para colocar essas ações em prática? A relação causa-efeito/meios-fins é adequada? Os objetivos da política/programa estão claros? Há comunicação e coordenação perfeitas? Estas são algumas das questões com as quais se lida nesta etapa das políticas públicas.

Trata-se, portanto, do momento de preparação para colocar as ações de Governo em prática. Contudo, para que isso seja feito de maneira adequada é preciso que a política a ser implementada esteja baseada numa teoria que relacione a causa (do problema) com o efeito desejado (a solução proposta). Os resultados dessa etapa do processo (outcome) constituem-se no impacto do programa ou política implementada.

Monitoramento

Como as agências administrativas afetam e conferem conteúdo às políticas adotadas, há necessidade de se realizar uma avaliação pontual (monitoramento) das ações de Governo referentes ao impacto da implementação. Durante o monitoramento abre-se a possibilidade de se corrigir os rumos da implementação, não só para que o desempenho das ações seja maximizado, mas também para que estas levem em conta se a relação meios-fins estão adequadas e se as metas previamente propostas têm, de fato, efetividade.

Avaliação

Por fim, a atividade de avaliação de resultados da política/programa concentra-se nos efeitos gerados, além de oferecer subsídios que possibilitem perceber em que medida as metas foram, de fato, atingidas (ou não) e de orientar a tomada de decisões sobre o futuro dessas ações. A avaliação consiste, portanto, numa análise a posteriori dos efeitos produzidos pelas políticas públicas.

39 Randall B. Ripley, "Stages of the Policy Process", op. cit.
40 C. Bullock, J. E. Anderson e D. W. Brady, Public Policy in the Eighties. Monterrey: Brooks/Cole Publishing Company, 1983.
41 John W. Kingdon, "How do Issues Get on Public Policy Agendas?". Em: William Wilson (org.), Sociology of the Public Agenda. Londres: Sage, 1993.
42 John W. Kingdon, Agendas, Alternatives, and Public Policies. Boston: Little, Brown, 1984.
43 Michael Cohen, James March e Johan Olsen, "A Garbage Can Model of Organizational Choice". Em: Administrative Science Quarterley, n. 17, 1972; pp. 1-25.
44 John W. Kingdon, op. cit.; pp. 82-84.

 
Voltar ao topo da página