Livraria da Folha

 
10/04/2010 - 20h16

Professor francês explica o existencialismo, leia trecho

da Livraria da Folha

Marcado pela noção de liberdade e pelo impacto que causou na literatura e na arte do século 20, o existencialismo --um dos mais importantes movimentos da filosofia contemporânea-- teve seu desenvolvimento estreitamente vinculado aos aspectos da Segunda Guerra Mundial.

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O existencialismo provocou grande impacto nas artes e na literatura do século 20
O existencialismo provocou grande impacto nas artes do século 20

Apesar de caracterizado pelo período pós-guerra e pela luta contra o totalitarismo, essa linha de pensamento tem como fundador o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855).

Considerado o instituidor do existencialismo, uma vez que foi o primeiro a empregar o conceito de "existência" no seu sentido que a filosofia utiliza hoje, as obras de Kierkegaard examinam a fé, a teologia e as instituições cristãs.

O livro "Existencialismo", escrito por Jacques Colette, professor emérito da Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne, apresenta os fundamentos do ideário existencialista, além dos principais nomes do movimento, entre eles Marcel, Sartre, Merleau-Ponty e Camus.

Abaixo, leia um trecho do livro que explica a importância de Kierkegaard na linha de pensamento.

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I. Kierkegaard: a dupla reflexão

"Existir em verdade, portanto penetrar sua existência com consciência, ao mesmo tempo eternamente, por assim dizer, muito além dela, no entanto presente nela, no entanto no devir, eis o que é verdadeiramente difícil." É nisso que consiste "a relação absoluta pela qual a existência se torna imensamente tensa, porque ela precisa efetuar constantemente um duplo movimento". Esse movimento é fonte de angústia, pois ele consiste em ir em direção ao incondicionado, não para nele se perder, mas para incessantemente voltar e reintegrar o campo do relativo e do condicionado. O estatuto da reflexão se revela assim em sua dualidade: como a existência mesma, a reflexão se desdobra na incerteza entre necessidade e possibilidade, entre passado e futuro, entre passividade e atividade, entre finito e infinito. "O pensador subjetivo é dialético em direção do existencial; ele é habitado pela paixão do pensamento que lhe permite manter firme a disjunção qualitativa", essa "disjunção absoluta" em relação à qual a obra da mediação, esse levantamento das metas relativas, permanece uma coisa subalterna.

O ser-si é reflexão, mas não a reflexão abstrata que, na Lógica hegeliana, define a existência como unidade da reflexão em si e da reflexão no outro. Entre esses dois momentos, intervém o que impede precisamente que se realize a unidade, ou seja, o tempo. O pensamento puro pode pensar o movimento já advindo, o tempo passado, a existência finda, mas não o que permanece abstratamente inconcebível, o tempo vivido do sujeito real, existente, isto é, que vive a absoluta disjunção, trabalhado pela paixão infinita, que só tem sentido ético e religioso. O existente existe no sentido de ex-sistere, aquilo que o fundou preexiste a ele e permanece além, sem que se possa articular definitivamente o que funda e o que é fundado.

No tempo real, a disjunção nunca é superada, a existência é vida do instante. Assim compreendido, "o tempo não se atribui nenhum lugar no pensamento puro". A existência temporal é o recife que faz naufragar o pensamento puro, segundo o qual o conceito manifestaria seu poder até sobre o tempo. Subjetivamente vivida, a paixão pelo infinito não tem o infinito como conteúdo (como aquilo que - quod), ela só se relaciona a ele segundo a modalidade (quo-modo) da decisão, no instante. "Mas o como, que é subjetivamente acentuado, é ao mesmo tempo, precisamente porque o sujeito é existente, dialético em relação ao tempo."

Vale dizer que é impossível a retomada de si na eternidade da reminiscência, pois reflexão e linguagem não têm outro elemento a não ser o tempo. A reflexão não é nem simples nem absoluta, ela é dupla. Com a relação absoluta nunca se chega ao fim, o trabalho da apropriação é infinito e, nessa matéria, não se trata de comunicação direta de resultados, não há efusão imediata. O duplo movimento (infinito/finito), assim como a comunicação (apropriação interiorizante/desa propriação exteriorizante), tem a ver com aquele ritmo discordante evocado também pela ideia kierkegaardiana da reduplicação. O redobrar do pensamento aqui exigido significa a passagem do pensamento à ação, da dialética das ideias à vida, mas também da reflexão primeira que, tendo atingido a palavra justa, sabe que tudo resta por fazer, ou seja, passar da expressão correta ao modo de comunicação que traduza a relação exata do existente (locutor ou escritor) com a ideia. Essa reflexão segunda só é exigida na ordem do existencial.

Nos domínios em que o pensamento objetivo tem sua justificação, a comunicação direta é natural, e pode-se traçar limites exatos que a expressão do pensamento deve se impor. O mundo, o conjunto dos fatos, dos estados de coisas, das situações dadas, deixa-se representar por imagens (Bild), que são como os modelos da realidade. Pode-se reconhecer aí os termos e a problemática de Wittgenstein, os dois pensadores tendo sido particularmente concernidos pelo problema do solipsismo da linguagem. Independentemente das menções explícitas de Wittgenstein a Kierkegaard na Conferência sobre a ética, assinalaremos apenas a proposição bem conhecida do Tractatus logicophilosophicus: "O que o solipsismo quer fazer entender é inteiramente exato, salvo que isso não se pode dizer, isso se mostra" (5.62). Trata-se aí, de certo modo, de um contrassenso não insensato. Para Kierkegaard, a interioridade da existência não se deixa dizer, se esse dizer é o da comunicação direta, por exemplo o idioma da abstração. Em seu isolamento, a subjetividade existente vive um "segredo essencial" que é o da vida ética e que difere dos segredos ordinários e contingentes. Enquanto a reflexão primeira e seus resultados podem se dizer e se entender diretamente, um segundo movimento se impõe relativamente a esse segredo, pois dois existentes singulares não podem ser duplamente refletidos da mesma maneira.

O gênio de Kierkegaard foi conceber e dar corpo a um estilo de comunicação duplamente refletida, feita de artifícios constantemente renovados na ordem da criação literária de ficções e de ensaios. Era para dar voz a isso na ordem existencial que a Idade Média chamava haecceitas. Não bastava indicar teticamente o lugar a partir do qual o leitor poderia ter do mundo da moral e da religião uma visão justa. É de forma reflexiva que, reconduzindo constantemente o discurso a si, o autor se apresenta ao mesmo tempo em que se ausenta dessa apresentação. Misturando o gracejo ao sério, o cômico ao trágico, a alusão à argumentação, ele deixa o leitor decifrar sozinho o apelo que eventualmente poderia passar através do que é dito. Enquanto o movimento diretamente perceptível da reflexão segue tranquilamente sua marcha, o da reflexão segunda comporta o trabalho contra si, dialética na segunda potência, espécie de "redobramento em que consiste o sério, comparável à pressão que determina a profundidade do sulco traçado pela charrua". "Se o pensamento exposto é reduplicado", a linguagem também será altamente vigiada; nenhuma palavra, nenhum incidente, nenhuma digressão, nenhuma expressão que produza imagem deve ser pronunciada por descuido. Quando o autor se sabe incapaz de "impor diretamente um freio a toda uma época", resta-lhe refrear-se a si mesmo. "É nesse ponto do existir, e devido à exigência ética endereçada ao existente, que é preciso refrear (at holde igjen), quando uma filosofia abstrata e um pensamento puro querem explicar tudo escamoteando o que é decisivo."

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"Existencialismo"
Autor: Jacques Colette
Editora: L&PM
Páginas: 128
Quanto: R$ 12,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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