Livraria da Folha

 
05/03/2010 - 11h28

Menina transporta-se para dentro do mundo dos livros; leia trecho

da Livraria da Folha

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Florence aprendeu a ler sozinha e a criar uma nova linguagem para si
Florence aprendeu a ler sozinha e a criar uma nova linguagem para si

Uma menina de 12 anos inventa um mundo paralelo e cheio de signos que a defenderão. É assim que a pequena Florence inventa sua própria linguagem em "A Menina que Não Sabia Ler".

O livro do crítico literário do jornal britânico "Daily Mail", John Harding, será publicado pela LeYa em março no Brasil e simultaneamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. A trama ambienta-se na nova Inglaterra do século 19.

A protagonista inventa um mundo paralelo para proteger seu irmão mais novo. Um dia, encontra a biblioteca proibida da mansão e passa a devorar os livros em segredo. O tio a proíbe de ler. Mas por que? Uma misteriosa mulher passa a ameaçar seu irmão. Motivo? A menina precisa encontrar pistas possíveis para preservar sua paixão secreta pela leitura e defender o irmão.

Leia abaixo o primeiro capítulo da obra.

*

É uma história curiosa a que tenho que contar, uma história de difícil absorção e entendimento, por isso é uma sorte que eu tenha as palavras para cumprir a tarefa. Se eu mesma digo isso, quando talvez não devesse, é que para uma menina da minha idade tenho um ótimo vocabulário. Extremamente bom, para falar com franqueza.

Porém, devido às opiniões rígidas de meu tio em relação a educação das mulheres, tenho escondido minha eloquência, soterrado meu talento e mantido apenas as formas mais simples de expressão aprisionadas no cérebro. Tal dissimulação transformou-se em hábito e foi motivada pelo medo, pelo grande medo de que, se falasse como penso, ficaria evidente meu contato com os livros e eu seria banida da biblioteca. E, como expliquei para a pobre Sra. Whitaker (pouco antes de sua trágica morte no lago), isso é algo que eu não acredito que possa suportar.

Blithe House é um grande celeiro, uma mansão de pedra rústica com muitos cômodos, tão imensa que meu irmão caçula, Giles, tão rápido nas pernas quanto lento na cabeça, leva três minutos ou mais para percorrê-la; uma casa desconfortável e deteriorada pela prudência, negligenciada, com os gastos controlados rigidamente (meu tio ausente tendo perdido todo o interesse por ela), com vazamentos e buracos, traças e ferrugem, fria, mal iluminada, repleta de cantos escuros, de modo que, apesar de ter vivido aqui toda a vida até onde consigo me lembrar, às vezes, especialmente às vésperas do inverno, quando vem caindo o crepúsculo, sinto tremores.

Blithe tem dois corações, um quente, um frio; um iluminado, outro sombrio mesmo no dia mais ensolarado. A cozinha, onde o forno está constantemente ardendo, é alegrada pela gorda Meg, sempre sorridente e com os braços enfiados na farinha, normalmente flertando com John, o empregado, que tenta conseguir um beijo, mas contenta-se com uma bitoca enfarinhada. Na porta ao lado, com o fogo estalando durante nove meses do ano, fica a sala da governanta, onde se pode encontrar a Sra. Grouse sentada na poltrona costurando ou diante da escrivaninha às voltas com inúmeros papéis, tentando, como ela diz, dar sentido às coisas "sem pé nem cabeça" - o que me parece contraditório - para que se encaixem. Esses dois aposentos formam um dos corações, o quente.

O coração frio (mas não para mim! Ah, não para mim!) bate no outro lado da casa. Mal-amada e esquecida, exceto por mim, a biblioteca não poderia ser mais diferente da cozinha: sem lareira, fria até no auge do verão, gelada no inverno, as janelas escurecidas por cortinas pesadas jamais abertas, de maneira que preciso roubar velas para ler e depois limpar os pingos incriminadores do chão. De uma ponta à outra mede 104 passos meus com sapatos, e 37 na largura. Três homens poderiam ficar em pé, um em cima do outro, e mal conseguiriam tocar o teto. Cada centímetro das paredes, tirando a porta, as janelas e os assentos abaixo delas, está coberto por prateleiras de madeira, do chão até o teto, todas ocupadas inteiramente por livros.

Nenhuma criada jamais entra aqui; o piso não é varrido, pois se intocado por passos, por que seria? As prateleiras não têm marcas de impressões digitais, as escadas móveis para se chegar às prateleiras mais altas são mantidas sempre no mesmo lugar, os livros suplicando para serem abertos, todo o lugar relegado à poeira e ao abandono.

Sempre foi assim (exceto quando havia governanta, pelo menos mais adiante), ao menos até onde me lembro, pois aqui cheguei pela primeira vez há um terço da minha vida, quando tinha 8 anos. Ainda não tínhamos governanta, porque Giles, que é três anos mais novo que eu, e a quem se destinava a educação, era considerado jovem demais para a escola ou para qualquer tipo de aprendizado, e um dia estávamos brincando de esconde-esconde quando abri uma porta estranha, uma que até então sempre estivera trancada - ou assim pensava eu, provavelmente devido à sua rigidez, que meu eu mais jovem não conseguiu vencer -, para me esconder dele ali, e descobri esse imenso tesouro de palavras. A brincadeira foi logo esquecida; fui de prateleira em prateleira, pegando um livro atrás do outro, espirrando com a poeira ao abrir cada um deles. É claro que eu não sabia ler, mas por algum motivo isso me deixava ainda mais maravilhada, todos os milhares - acho que milhões - de linhas codificadas com impressão indecifrável.

Muitos livros eram ilustrados, com xilogravuras e gravuras coloridas, citações frustrantes logo abaixo, cada uma delas mostrando a miserável impotência do tracejar dos dedos.

Depois, após receber uma reprimenda por ter desaparecido por tanto tempo que a Sra. Grouse colocara todo mundo à minha procura, não apenas as criadas mas também a enfarinhada Meg e John, pedi à Sra. Grouse que me ensinasse a ler. Instintivamente, nada falei da biblioteca e senti muito medo quando ela me olhou de forma estranha e disse:

- Muito bem, senhorita, o que foi que a levou a ter essa ideia?

Era uma daquelas perguntas que é melhor não responder, pois se você fica em silêncio, os adultos sempre partem para alguma outra coisa; falta-lhes a persistência das crianças. Ela respirou profundamente e soltou um longo suspiro.

- A verdade, Srta. Florence, é que não estou certa de que seu tio queira isso. Ele deixou muito clara sua visão a respeito da educação das mulheres jovens. Acho que ele diria que este não é o momento.
- Mas, por favor, Sra. Grouse, ele não precisa saber. Eu não contaria a ninguém, e se ele surgisse de repente eu poderia esconder meu livro atrás das costas e colocá-lo sob as almofadas da poltrona. A senhora poderia me ensinar em sua sala; nem mesmo os criados precisam saber.

Ela riu e depois voltou a ficar séria. Alisou a testa.

- Sinto muito, Srta. Florence, gostaria de poder fazer isso, realmente gostaria, mas poderia perder meu emprego.
- Ela esboçou um sorriso, algo que fazia sempre com facilidade.
- Mas vou lhe dizer uma coisa: sobrou um pouco dos recursos para as despesas deste mês, talvez o suficiente para uma nova boneca. E então, mocinha, o que diria de uma nova boneca?

Eu disse sim para a boneca; era melhor parecer comprada, mas sua recusa em me ajudar, longe de me desencorajar, foi o oposto e apenas estimulou minha determinação. Lentamente, e com alguma dificuldade, aprendi a ler sozinha. Ficava na cozinha e roubava letras de John enquanto ele estava lendo o jornal. Apontava para um "s" ou um "b" e perguntava a ele qual era o som. Um dia na biblioteca tive a sorte de encontrar uma cartilha de criança e, a partir daí e daqui e dali, acabei decifrando o código.

Assim começou a dissimulação em minha vida. Naqueles primeiros tempos, Giles e eu ficávamos soltos; podíamos brincar do que quiséssemos na maior parte do dia. Tínhamos apenas duas restrições: uma delas, evitar o velho poço, embora estivesse coberto com tábuas e lajes muito pesadas para podermos levantá-las, e por isso mesmo era apenas uma daquelas coisas com que os adultos gostam de se preocupar e não oferecia perigo nenhum para nós; a outra, ficar longe do lago, que era fundo demais em alguns lugares, talvez oferecesse. Como os adultos gostam de ver perigo onde não existe, procurá-lo em um lago ou em um poço que em si mesmos não podem causar qualquer mal sem a intervenção da negligência ou malevolência humana. No entanto, esses mesmos adultos cautelosos não perceberiam o surgimento da ameaça real para nós, crianças, pois ao contrário de nós, apesar de toda a sua conversa sobre fantasmas e monstros na casa, fazia muito tempo que haviam deixado de ouvir os passos inexplicáveis no escuro.

Mantendo-se à parte, meu irmão Giles não possui muitos talentos, mas é muito bom para guardar segredos. Quando o levei até a biblioteca, pouca importância deu aos livros, embora pudesse manter-se entretido pelos desenhos coloridos de pássaros ou borboletas por uma ou duas horas. Ele se satisfazia em ficar correndo para cima e para baixo pelas escadas e subindo nas prateleiras ou escondendo-se atrás das cortinas, ou então brincava lá fora; você podia confiar nele, mesmo naquela tenra idade, para evitar o lago ou os olhos indiscretos da Sra. Grouse.

Eu, entretanto, passava horas e horas lendo, e como minhas ausências, embora despercebidas durante o dia, seriam notadas à noite, meu quarto tornou-se um depósito de livros. Depois que Giles chegou aos 8 anos e foi enviado para a escola, minha existência, é claro, passou despercebida por todos. Podia ir e vir como bem entendesse; essa parte da casa era tão pouco frequentada que fiquei atrevida e pouco me preocupava com o fato de alguém me ver entrar na biblioteca ou em perturbar o pó que ali vivia. Dessa maneira, absorvi o Declínio e queda, de Gibbon, os romances de Sir Walter Scott, Jane Austen, Dickens, Trollope, George Eliot, a poesia de Longfellow, Whitman, Keats, Wordsworth e Coleridge, as histórias de Edgar Allan Poe, estavam todos lá. Mas um autor destacou-se entre todos. Shakespeare, é claro.

Comecei com Romeu e Julieta, passei para as histórias e logo consumi rapidamente o resto. Chorei pelo Rei Lear, fiquei com medo de Otelo e aterrorizada com Macbeth; Hamlet, simplesmente adorei. Os sonetos emocionaram-me. Acima de tudo, apaixonei-me pelo pentâmetro iâmbico, estranha paixão para uma garota de 11 anos.

O que eu mais gostava em Shakespeare era a facilidade com que lidava com as palavras. Parecia que se não houvesse palavra para o que queria dizer ele simplesmente a inventava. Ele poetava o idioma. Por inventar palavras, ele bate qualquer outro autor. Quando crescer e tornar-me escritora, e sei que me tornarei, pretendo shakesperear algumas palavras. E já estou praticando.

Meu maior desejo sempre foi ver Shakespeare no palco, mas não existe nenhum teatro daqui até Nova York, desesperançando minha grande ambição. No último verão, não muito antes de Giles ser enviado para a escola, as pessoas da propriedade vizinha, os Van Hoosiers, apareceram; eles tinham um filho, Theodore, alguns anos mais velho que eu, filho único que eles queriam desentediar. Viviam em Nova York durante a maior parte do ano, viajando centenas de quilômetros até aqui apenas no verão para fugir do calor da cidade, e o jovem não tinha quem o distraísse, por isso entusiasmou-se por encontrar-me. Sentou-se e examinou-me durante todo o chá.

Depois, a Sra. Grouse sugeriu que eu mostrasse o lago a Theodore. Quis a infelicidade que Giles estivesse de cama naquele dia, recolhido em razão de uma forte dor de cabeça. Meu irmão é tão doente quanto eu sou saudável; tem doenças suficientes para nós dois, enquanto eu não tenho tempo para indisposições, tendo que cuidar e me preocupar. A ausência de Giles, tão logo o jovem Van Hoosier e eu atravessamos as portas, deu ao meu visitante a chance de soltar as rédeas comigo.

Ele me incomodou, obcecado que estava para que eu permitisse que ele me beijasse. Eu não tinha uma objeção determinada, sendo como era, não muito mais jovem do que Julieta quando se apaixonou, mas o jovem Van Hoosier não era um Romeu. Tinha uma cabeça grande e olhos como bolas que saltavam das cavidades. Parecia um inseto gigante. Agora, sou alta para a minha idade, mas Theodore era ainda mais alto, sem metade da carne; ele parecia um varapau, o que não me agradava, pois jamais fui dessas pessoas que gostam de ser olhadas de cima.

Estávamos sentados lado a lado em um banco de pedra junto ao lago, mas afastei-me dele, sentando-me na outra ponta, por considerar suas atenções aborrecidas, e estava prestes a levantar-me para ir embora quando então ele deixou escapar, sem dúvida porque devo ter mencionado Shakespeare, que havia visto Hamlet. Pus-me alerta, endireitei-me e olhei para ele novamente. Talvez, afinal, esse rapaz não fosse tão iletrado quanto conseguia fazer parecer; havia possibilidades aí, eu senti. Propus-lhe um acordo. Eu lhe daria permissão para o beijo que tanto desejava se ele escrevesse um poema para mim.

Bem, ele puxou caderno e lápis e atirou-se à tarefa ali mesmo. Em pouco tempo estava arrancando a página em que havia escrito e entregando-a a mim, o que me impressionou bastante, mas ouso dizer que se pode imaginar o que aconteceu. Garota idiota, eu queria que ele me desse um dia de verão, e realmente pensei que pudesse. Em vez disso, é claro, enrolou-me com um versinho e, depois de ter forçado o beijo a que alegava ter direito, deixou-me chorando junto ao lago, não só beijada grosseiramente, mas também com uma poesia ruim. Eis como acabava a ode de Van Hoosier, assim você entenderá por si mesmo:

Quem é que sendo um pouco inteligente
Não gostaria de beijar Florence?

 
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