Livraria da Folha

 
05/03/2010 - 16h52

Professor examina como alemães construíram nova nação após fim do nazismo

da Livraria da Folha

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Saiba como a derrota do nazismo provocou o despertar da nação
Saiba como a derrota do nazismo provocou o despertar da nação

Em "Alemanha, 1945", o professor de história contemporânea da Universidade de York, Richard Bessel, traça um panorama aterrador que levou o país à transição do nazismo para o pacifismo na segunda metade do século 20.

Bessel mostra como o trauma do fim da Segunda Guerra Mundial incutiu nos alemães, além do horror a qualquer conflito, a ideia de que eles também eram vítimas dos crimes nazistas e das forças de ocupação.

O autor examina como os alemães saíram das trevas e construíram uma nova nação, cuja postura pacifista contribuiu para a proeminência econômica do país entre as potências europeias.

Leia abaixo um trecho extraído do primeiro capítulo do livro.

*

À meia-noite, quando raiava o ano de 1945, a rádio alemã transmitiu a mensagem de Ano-Novo de Hitler ao povo alemão. Ele assegurava, mais uma vez, para um país que considerava a derrota inevitável, sua fé na vitória final, e a "confiança inabalável de que está chegando a hora em que a vitória finalmente virá para aquele que a merece acima de todos: o Grande Reich Alemão". A reação popular à mensagem do Führer foi surpreendentemente positiva, embora os alemães tenham ficado desapontados com a ausência de detalhes sobre como alcançar a vitória, se com novas armas ou novas ofensivas, ou como deter a campanha de bombardeios aliados, que causava tanta destruição nas cidades por todo o país. Menos de duas semanas depois, em 12 de janeiro, teve início a grande ofensiva soviética que determinou a sorte do "Reich de Mil Anos". No fim de janeiro, a Wehrmacht sofreria mais baixas do que em qualquer mês de sua história, e o número de militares alemães mortos atingiria o cume de mais de 450 mil - bem acima dos 185 mil membros da Wehrmacht mortos em janeiro de 1943, o mês da derrota em Estalingrado. Foi a maior carnificina já vivida pela Alemanha. Esse banho de sangue abriu o ano de 1945; e com ele extinguiu-se aquilo que Marlis Steinert chamou de "última centelha de esperança" da Alemanha, acendida pela mensagem de Ano-Novo de Hitler.

No final de março de 1945, um relatório de inteligência, que parece ter sido preparado pelo Serviço de Segurança das SS, descreveu a opinião pública alemã nos termos mais sinistros. As esperanças de uma revanche tinham desaparecido totalmente. O colapso das frentes de batalha alemãs no leste e no oeste, o bombardeio aliado, a "desordem caótica dos transportes", tinham produzido um clima de "desesperança generalizada".

Uma grande parcela da população acostumou-se a viver apenas o momento presente. Faz render ao máximo qualquer vestígio de conforto que a vida lhes ofereça. Qualquer desculpa, que noutra situação pareceria trivial, é usada para justificar o ato de beber até a última gota a garrafa de vinho guardada para comemorar a vitória, o fim do blecaute, a volta do marido ou do filho. Muita gente já convive com a ideia de acabar com tudo. Em toda parte, é grande a procura por veneno, por uma pistola, por outros meios de pôr fim à vida. Suicídios, causados por depressão diante da catástrofe que certamente virá, ocorrem todo dia. O assunto que predomina nas conversas familiares e entre parentes, amigos e conhecidos é como planejar a vida sob ocupação inimiga. As pessoas separam o dinheiro economizado e procuram esconderijos seguros. Sobretudo os mais velhos se atormentam dia e noite com pensamentos sombrios, e, preocupados, não conseguem dormir. Desconhecidos discutem abertamente em veículos de transporte público coisas que, poucas semanas atrás, ninguém teria ousado imaginar.

Seis semanas depois, aconteceram essas "coisas que, poucas semanas atrás, ninguém teria ousado imaginar": a Wehrmacht se rendeu incondicionalmente e os exércitos aliados ocuparam toda a Alemanha. No lugar da vitória em que Hitler dizia ter uma "confiança inabalável", os alemães viram a derrota total. Nunca na história do mundo moderno um país fora derrotado de forma tão completa como a Alemanha nazista. No fim do "ataque [nazista] aos fundamentos da civilização", a Alemanha estava em ruínas - política, social, econômica e moralmente.

Durante décadas, historiadores examinaram, com impressionante minúcia, a trajetória catastrófica da história da Alemanha moderna, para explicar como um país desenvolvido, uma nação culta, pôde abandonar valores democráticos e civilizados, desencadear guerras brutais de pilhagem e violência racista, embarcar em campanhas organizadas de matança coletiva sem paralelo na história humana, e levar o bárbaro projeto nazista a um fim catastrófico e suicida. Em resumo, temos nos preocupado em explicar como a humanidade na Europa Central mergulhou no abismo da tirania, da violência, da guerra e do genocídio. No entanto, essa não é, nem de longe, a história toda, e nos últimos anos tem-se dedicado mais atenção também ao fim da Alemanha nazista. Tão importante quanto entender como as pessoas mergulharam nos horrores do nazismo e da guerra é compreender como emergiram do outro lado, como conseguiram superar o passado.

O buraco de onde os alemães tiveram de sair em 1945 era bem profundo. Depois que a Alemanha nazista submeteu povos, em todo o continente europeu, a uma violência terrível, os próprios alemães, sobretudo nos últimos estágios da guerra, foram expostos à barbárie. O país tinha sido alvo de uma campanha de bombardeios sem precedentes em seu poder de destruição, que atingiu o auge no começo de 1945 e matou quase meio milhão de pessoas. Os bombardeios, a evacuação de cidades ameaçadas pelo ataque aéreo aliado, a fuga para o oeste de milhões de alemães à frente do Exército Vermelho e a subsequente expulsão de outros milhões depois da rendição da Wehrmacht deixaram ao desabrigo pelo menos um quarto da população alemã. O império dos campos de concentração nazistas tinha se degenerado numa série de pontos de coleta, onde não se atendiam às necessidades, ou nem sequer se garantia a sobrevivência dos prisioneiros, com consequências previsivelmente horrendas. O sistema político nazista desabou, e o que dele restava na primavera de 1945 foi abolido pelas potências aliadas de ocupação. Milhões de soldados alemães tinham sido mortos ou feridos, e havia outros milhões nos campos de prisioneiros de guerra dos Aliados. O sistema de transportes do país estava, em sua maior parte, paralisado; o fornecimento de eletricidade e de gás fora cortado; os sistemas de telecomunicações deixaram de funcionar, e os de água e esgotos sofreram severos danos; os alimentos eram escassos, e muita gente corria o risco de desnutrição; as doenças proliferavam e os serviços médicos foram seriamente prejudicados. Longe de serem os donos da Europa, os alemães passaram a ser governados pelos exércitos de ocupação. Um povo que fora educado no racismo e conquistara um continente, submetendo seus habitantes à violência assassina em escala industrial, teve de fazer a transição para o pós-guerra nas circunstâncias mais desfavoráveis.

Essa transição é a dobradiça sobre a qual gira a história da Alemanha e da Europa do século XX: da mais terrível explosão de violência da história mundial ao começo de um período caracterizado (ao menos na Europa Ocidental) pela paz e pela prosperidade. Depois da experiência de destruição, derrota, doença, morte e pobreza numa escala inimaginável, os alemães deram seus primeiros passos no caminho que levaria a um governo democrático estável, à prosperidade num nível superior ao que podia imaginar a maioria das pessoas antes da Segunda Guerra Mundial, e a um comportamento pacífico e civilizado.

A Alemanha, de fato, desceu aos infernos e, em 1945, começou a emergir; a pacífica segunda metade do século XX repousou nas cinzas da primeira.

Como explicar essa notável transição - o momento decisivo do século XX na Europa, assim como da vida de milhões de indivíduos? É necessário buscar resposta para essa pergunta - tema central deste livro -, pois foi enorme a violência que se abateu sobre a Alemanha no último ano da guerra. No início de 1945, o país assistiu à maior onda de matança que o mundo já vira, quando as baixas militares alcançaram seu ponto mais alto, a campanha de bombardeio aliado chegou à intensidade máxima, e milhões de alemães fugiram para o oeste, à frente do Exército Vermelho. A violência que os alemães sofriam em sua vida diária foi um choque drástico, que afastou para o fundo da memória suas lembranças das fases anteriores da guerra, quando estavam em posição vantajosa e eram com mais frequência perpetradores de violência do que suas vítimas. Os efeitos do choque de violência, do trauma que 1945 significou para milhões de alemães, dificilmente podem ser superestimados.

Isso precisa ser compreendido no contexto da ascensão e da queda do Estado racial nazista. O choque experimentado pelas pessoas, quando se tornaram vítimas de uma violência em escala gigantesca e da completa derrota militar, foi maior ainda depois da experiência de uma ditadura que propagara a ideia da superioridade racial alemã e fora muito bem-sucedida em subjugar outros povos. A reação popular ao que ocorrera em 1945, assim como as opiniões daqueles que ainda mandavam no regime nazista quando ele ruía, tinham sido condicionadas pela tremenda fé no líder, pela cumplicidade generalizada com os crimes cometidos (com o qual milhões de pessoas lucraram direta ou indiretamente), e pela ampla concordância com muitas das hipóteses ideológicas que serviam de base ao regime: que o governo democrático, na forma do "sistema" de Weimar, fora um caótico fracasso; que os alemães e sua cultura eram superiores a outros povos e culturas, sobretudo do Leste Europeu; que - nas palavras de um volume de propaganda publicado logo depois da campanha da Wehrmacht na Polônia em 1939 - as forças de combate da Alemanha eram formadas pelos "soldados do melhor Exército do mundo"; e que os alemães deveriam compartilhar o sentimento que Friedrich Meinecke, decano da profissão histórica alemã e, posteriormente, reitor fundador da Universidade Livre de Berlim, descrevera para um colega pouco antes da conquista da França em 1940, como um misto de "alegria, admiração e orgulho diante deste Exército". A rápida recuperação econômica e os espantosos êxitos diplomáticos da década de 1930, os surpreendentes triunfos militares durante a primeira metade da guerra, e o fato de que os alemães tinham sido capazes de comer relativamente bem durante o conflito, graças à brutal exploração de um continente conquistado, tornaram o completo colapso militar e a extrema violência que se abateu sobre eles em 1945 - a súbita transição do poder à impotência - ainda mais arrasadores. Em consequência, quase nada restou de um movimento e uma ideologia que haviam tomado conta da Alemanha durante doze anos.

 
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