Livraria da Folha

 
22/03/2010 - 09h11

Britânica descobre flamenco e história espanhola em "O Retorno"; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Londrina descobre a cultura e história da Espanha em romance
Londrina descobre a cultura e história da Espanha em romance

Novo romance de Victoria Hislop, autora de "A Ilha", "O Retorno" conta a história de uma londrina com o casamento em crise que vai para a Espanha em férias comemorar o aniversário de 35 anos da melhor amiga com aulas de flamenco.

Mas em um café sossegado de Granada, uma conversa casual com o proprietário e uma intrigante coleção de fotografias antigas a atraem para a história extraordinária da Guerra Civil Espanhola e da vida de personagens locais encantadores e marcantes, como toureiros, dançarinas, músicos e o poeta García Lorca.

Setenta anos antes, o café era o lar dos Ramírez, família que, em 1936, presencia as piores atrocidades do golpe militar liderado pelo general Francisco Franco, e vivencia o despedaçar do frágil equilíbrio do país. Divididos pela política e pela tragédia, todos escolhem um lado e travam uma batalha pessoal à medida que a Espanha se dilacera.

Veja abaixo o trecho inicial de "O Retorno", com belas descrições da tradicional dança espanhola.

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O RETORNO

CAPÍTULO 1

Granada, 2001

Segundos antes, as mulheres tinham ocupado seus lugares, as últimas pessoas da plateia a entrarem antes que o gitano carrancudo passasse os ferrolhos na porta com um gesto decidido.

Arrastando atrás de si as saias volumosas, cinco moças de cabelos negros como azeviche entraram em cena. Os vestidos justos enroscavam-se no corpo delas em tons vermelho e alaranjado flamejantes, verde ácido e amarelo-ocre. Essas cores vívidas, um coquetel de perfumes fortes, a rapidez da chegada das mulheres e seu andar arrogante eram de uma dramaticidade impactante, estudada. Atrás delas vinham três homens, vestidos em tom escuro como se fossem para um enterro, todos de negro, do cabelo untado com óleo até os sapatos de couro feitos à mão.

À medida que a tênue, etérea batida de uma palma, com o som de uma das mãos roçando na outra, infiltrou-se no silêncio, a atmosfera mudou. De um dos homens veio o som dos dedos correndo pelas cordas de uma guitarra. De outro emanou um gemido fundo e melancólico que logo fluiu para uma canção. A aspereza de sua voz combinava com a rusticidade do lugar e com os traços duros de seu rosto marcado pela varíola. Só o cantor e sua trupe compreendiam o dialeto obscuro, mas a plateia percebeu o sentido das palavras. Um amor se perdera.

Passaram-se assim cinco minutos, com o público de umas cinquenta pessoas sentado no escuro em torno das paredes de uma das úmidas cuevas de Granada mal se atrevendo a respirar. Não houve um momento preciso em que a música terminou - simplesmente se desvaneceu no ar -, e foi a deixa para as moças saírem em fila, movendo-se com sensualidade crua, olhos fixos na porta adiante, como se não percebessem a presença dos estrangeiros na sala. Havia uma atmosfera de ameaça no ambiente sombrio.

- Já acabou? - cochichou uma das retardatárias.

- Espero que não - respondeu a amiga.

Durante alguns instantes, houve uma tensão extraordinária no ambiente e então um som suave e contínuo foi chegando até eles. Não era música, mas um murmúrio brando percutindo: o som de castanholas.

Uma das moças estava voltando, batendo os pés enquanto adentrava o espaço em forma de corredor, os babados do vestido roçando nos sapatos empoeirados dos turistas da primeira fila. O tecido da roupa, de um tom vivo de tangerina com imensas bolas pretas, colava-se em seu ventre e em seus seios. As costuras estavam repuxadas. Os pés batiam ritmadamente na faixa de madeira que constituía a pista de dança: um-dois-um-dois-um-dois-três-um-dois-três- um-dois

Então suas mãos se levantaram, as castanholas vibraram num trinado intensamente prazeroso e ela iniciou seu lento rodopiar. Durante todo o tempo em que girava, seus dedos estalavam nos pequenos discos de madeira que tinha nas mãos. A plateia estava hipnotizada.

Uma cantiga que soava como um lamento acompanhava-a, o cantor quase sempre mantendo os olhos baixos. A dançarina continuava, num transe próprio. Se estava ligada à música, não o demonstrava, e se tinha consciência da presença de sua plateia, as pessoas não o sentiam. A expressão em seu rosto sensual era de pura concentração e seus olhos estavam voltados para algum outro mundo que só ela enxergava. O tecido debaixo de seus braços escureceu com o suor e a testa cobriu-se de gotas à medida que ela girava, mais e mais depressa.

A dança terminou como começara, com uma batida de pé resoluta, um ponto final. As mãos estavam levantadas acima da cabeça, os olhos fixos no teto baixo e abobadado. A mulher não demonstrava sequer reparar na reação do público, que poderia muito bem não estar presente, pois não faria qualquer diferença para ela. A temperatura subira dentro da sala, os que ocupavam os primeiros lugares inalavam a mistura inebriante do perfume almiscarado com a transpiração que ela espalhara pelo ar.

Mal ela saiu do palco e outra moça já tomava seu lugar. Havia um quê de impaciência nessa segunda dançarina, como se quisesse acabar logo com aquilo. Mais poás pretos ondularam diante dos olhos dos espectadores, dessa vez sobre um fundo vermelho vivo, e uma cascata de cabelos negros cacheados caía sobre o rosto de cigana, ocultando tudo o mais exceto os olhos árabes de traços bem definidos, delineados com um risco espesso de kohl. Não havia castanholas dessa vez, mas o estrépito dos pés batendo no chão repetidamente, incessantemente: clak-a-taca taca, clak-a-taca taca, clak-a-taca taca

O movimento de ida e volta, do calcanhar para os dedos dos pés e vice-versa, parecia de uma velocidade impossível. Os sapatos pretos pesados, de saltos altos e sólidos e biqueiras de aço, vibravam no palco. Os joelhos dela devem ter absorvido milhares de ondas de choque. Durante algum tempo, o cantor permaneceu em silêncio de olhos fixos no chão, como se encontrar o olhar daquela beleza morena pudesse transformá-lo em pedra. Não dava para saber se o guitarrista acompanhava o sapateado da moça ou se ditava o seu ritmo. A comunicação entre eles era ininterrupta. Provocante, ela puxou as camadas volumosas da saia para revelar pernas benfeitas metidas em meias escuras e exibiu ainda mais a rapidez e o ritmo de seus passos. A dança entrou num crescendo conforme a moça girava, um pouco dervixe rodopiante, um pouco pião. Uma rosa que trazia precariamente enfiada no cabelo voou longe para o meio da plateia. Ela não se abaixou para apanhá-la e saiu marchando da sala antes mesmo que a flor chegasse ao chão. Foi um desempenho introvertido e, simultaneamente, a mais escancarada manifestação de autoconfiança que já tinham presenciado.

A primeira dançarina e o acompanhante seguiram-na para fora da cave, os rostos sem expressão, ainda indiferentes aos seus espectadores apesar dos aplausos.

Antes do final do espetáculo, houve ainda mais uma meia dúzia de dançarinos, e todos transmitiram a mesma tônica perturbadora de paixão, raiva e tristeza. Houve um homem cujos movimentos eram tão provocantes quanto os de uma prostituta, uma mocinha cuja representação de infelicidade contrastava desconfortavelmente com sua extrema juventude, e uma mulher mais velha em cuja face de sulcos profundos estavam desenhadas sete décadas de sofrimento.

Por fim, quando os artistas se foram, as luzes se acenderam. Enquanto saía, a plateia viu-os de relance numa pequena sala de fundos discutindo, fumando e bebendo em copos altos, cheios até a borda de uísque barato. Dispunham de quarenta e cinco minutos de intervalo até a apresentação seguinte. Estava abafado na sala de teto baixo, que cheirava a álcool, suor e charutos fumados muito tempo atrás, e assim as pessoas ficaram aliviadas ao saírem para o ar frio da noite, de uma claridade e uma pureza que as lembrava que não estavam muito longe das montanhas.

- Foi extraordinário - comentou Sonia com a amiga. Ela não sabia muito bem o que queria dizer com aquilo, mas foi a única palavra que pareceu servir.

- Foi mesmo - concordou Maggie. - E tão tenso.

- É exatamente isso - confirmou Sonia -, muito tenso. Nem um pouco o que eu imaginava.

- E aquelas moças não pareciam muito felizes, não é?

Sonia não se deu o trabalho de responder. O flamenco evidentemente não tinha muito a ver com felicidade. Chegara a essa conclusão nas duas últimas horas.

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"O Retorno"
Autora: Victoria Hislop
Editora: Intrínseca
Páginas: 408
Quanto: R$ 39,90
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha.

 
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