Livraria da Folha

 
24/03/2010 - 18h21

Em "Estou Viva, Não Uso Mais Drogas", produtora musical expõe drama da cocaína

da Livraria da Folha

Divulgação
Cantores famosos desfilam no livro da produtora Bell Marcondes
Cantores famosos desfilam no livro da produtora Bell Marcondes

Bell Marcondes foi produtora de sucesso nos anos 80, trabalhando com artistas como Milton Nascimento, Gilberto Gil e Simone. O sucesso na indústria da música desapareceu após ela se viciar em cocaína. A decadência foi impiedosa: chegou a pedir esmolas na rua, afundou no alcoolismo e esteve à beira da morte. Mas ela teve uma segunda chance. E essa história é contada em detalhes no livro "Estou Viva, Não Uso Mais Drogas - O Inferno de Bell".

No seu depoimento autobiográfico, Bell relata situações do cotidiano de um dependente químico no mundo da música. Ela faz diversas referências sobre convivência com artistas.

"Correu tudo certo no show. Depois de tudo acertado no hotel, pegamos nossas bagagens e fomos embora. Na volta, o clima estranho estava maior ainda e eu com muita vontade de usar alguma coisa, usar cocaína, fumar um baseado, sei lá", narra na página 122.

Leia um trecho do livro.

*

Quem ouviu algumas histórias de um dependente químico já ouviu todas. Mas vou relatar, aqui, algumas da minha vida.

Maria Isabel Marcondes Luz, Bell Marcondes. Já nem sei mais qual é o meu nome. Gosto de ambos. Durante muito tempo acreditei que a Bell Marcondes era a produtora bem-sucedida e quem tinha problemas era a Maria Isabel, como se pudesse separar a profissional da pessoa física. Mas quer me ver atrapalhada? É só escrever Bell com um ele apenas.

- É... hum... por favor, é com dois eles, de sino em inglês, não é de Isabel, é de sino mesmo.

Foi uma professora muito querida na minha adolescência quem colocou esse apelido. Ela dizia que eu era como um sino na cabeça dela, "dim dom, dim dom..." E me perco em explicações infindáveis.

E quando me chamam de Isabel sem o Maria (ai, ai) ou quando emendam tudo "Marisabeeeel"?

Tenho um amigo muito querido, o Sacha Band, que me perguntou um dia:

- Posso te chamar de Bebel?

Para mim foi a glória! Adorei! Demonstra carinho e intimidade - e é bom me sentir amada e íntima de alguém.

Mamãe me chamava de Maria Isabel, adotou filhota por um tempo, mas até ela terminou me chamando de Bell. No dia em que vi um bilhete escrito por ela e lá estava o Bell, não tive mais nenhuma dúvida. Porque mãe é mãe, é diferente. E como até ela sucumbiu ao Bell, não teve mais jeito.

Não sei de onde, nem com quem, nem como minha mãe foi para a maternidade. Como também não sei para onde, nem com quem, nem como foi ao sair comigo nos braços.

Minha vida é assim, recordações entrecortadas, histórias mal contadas. Não que mamãe não soubesse contar uma história. Ao contrário, era hábil nessa arte e enfatizava aquilo que mais gostava, ou criava. Mas tudo o que ela criou foi a parte negativa, com pessoas perseguindo-a, homens tentando arrombar a porta para matála. O que havia de real para mim era o medo que eu sentia quando a via na janela do apartamento gritando por socorro.

Os médicos da prefeitura iam à nossa casa com freqüência para atestar que ela não poderia trabalhar. Aquele movimento de ambulâncias e carros de polícia na minha casa me assustava e enchia de vergonha. Também era confuso não ter pai e ouvir minha mãe praguejando: "Aquele carcamano que veio em porão de um navio", como se isso fosse alguma desqualificação ou justificasse sua ausência.

Não entendia - como ainda não entendi - muita coisa que acontecia comigo. Com as lembranças fragmentadas, vou tentando (re) montar e contar a minha história. Sou filha única de mãe solteira. Tinha quarenta anos quando eu nasci. Meu pai, dizia ela, era um italiano, dono da "Cantina do Marinheiro", que ficava na Avenida Alcântara Machado, muito famosa, referência em pratos italianos com frutos do mar.

Meu pai era napolitano. Quando eles se conheceram ele tinha apenas um barzinho na rua dos Trilhos, no bairro da Mooca, e estava começando sua vida de imigrante, como tantos outros que vieram para o Brasil. A única coisa que eu ouvia falar dele, à boca miúda, era que tinha abandonado a minha mãe grávida, ela, aos berros, praguejando contra ele.

Dizem que a personalidade é formada até os sete anos de idade. Nasci em 1956 e no ano seguinte minha mãe começou a trabalhar na Prefeitura Municipal de São Paulo, aos 41 anos. Como ela viveu até então é um amontoado de informações desconexas.

Fico imaginando como foi a gravidez dela, uma mãe solteira com hipotireodismo, nanismo - ou seja lá qual for o nome correto para justificar a estatura bem reduzida - e sem familiares vivos próximos. A mãe dela, minha avó, morreu três meses após dar à luz. Meu avô também faleceu bem jovem. Filha única, mais o preconceito da sociedade e ainda todas as limitações que a baixa estatura lhe proporcionava. A vida era difícil para ela.

Mamãe, quando ficou grávida, ficou na casa de uma amiga, a Conceição, que anos mais tarde conheci como chefe dela na Secretaria de Obras da Prefeitura, candidata a minha madrinha de crisma e alguém que me dava as roupas usadas que sua neta não queria mais.

Também parece que ela ficou na casa da família Godinho. E aí me pergunto: mas ela não tinha a própria casa? Não tinha móveis, lençóis, cama, guarda-roupa, fogão, mesa? Então lembro de ouvi-la contar que os móveis que tínhamos foram adquiridos após o meu nascimento, quando ela alugou o apartamento da Barra Funda e eu já tinha uns cinco anos. Mas, até essa época, onde e como morávamos?

A forma fragmentada de mamãe referir-se ao seu passado faz com que eu fique a montar um quebra-cabeça sem fim. O apartamento era uma quitinete na Alameda Ribeiro da Silva. O início da rua ficava no bairro Campos Elíseos, um bom lugar, mas o final, onde morávamos, já pertencia à Barra Funda. Pelo nome, já dava para saber a barra que era.

Nosso apartamento, apesar de nº 304, ficava no segundo andar, de frente para a rua. O prédio estava bem vazio, e os apartamentos vagos não eram recolocados para alugar. Diziam que o edifício, quando se esvaziasse por completo, seria vendido. Isso dava um ar bem sombrio aos andares pouco habitados.

Em frente ao nosso apartamento morava um senhor aposentado e muito bonzinho que gostava de crianças e vivia nos dando guloseimas. No final do corredor vivia um homem sozinho - o mesmo homem que minha mãe, nas suas manias de perseguição, achou que queria matá-la. Os outros dois ou três apartamentos estavam vazios.

No terceiro andar morava dona Helena, uma senhora que adorava o cantor Altemar Dutra. E eu, bem menina, sabia cantar de cor todas as suas canções de amor e de dor-de-cotovelo. Minha mãe dizia que ela tinha depressão e que tempos mais tarde ela se suicidou. No quarto andar, a única família era a de um mecânico de automóveis. Ele e a mulher tinham dois filhos, duas gracinhas. Eu adorava os meninos e por eles era correspondida.

No quinto andar morava dona Lígia, uma costureira completamente fanática por corrida de cavalos. O que sofria costurando, gastava jogando. Ela tinha três filhos: um casado, um adolescente e a Cecília. Nós tínhamos a mesma idade e, apesar das outras pessoas acharem-na uma menina chata, eu gostava demais dela. Era minha melhor amiga. Neste mesmo andar viviam dois policiais militares, que nunca estavam em casa. Ou então, quando estavam, só ficavam dormindo. Era o que nós deduzíamos porque não ouvíamos nenhum barulho.

No sexto e último andar morava uma senhora com sua família. Eram os síndicos do prédio. E ainda no lugar que seria a cobertura, onde ficava a casa das máquinas do elevador, era o espaço usado para se estender roupas para secar. No subsolo do prédio morava o seu Elias, o zelador, e sua família.

Nessa época, minha mãe trabalhava no Pronto Socorro da Barra Funda e, como tinha horários malucos, eu ficava muito sozinha. Um dia levei para casa um gatinho que achei no tronco oco de uma árvore. Durante muitos anos ele foi meu companheiro. Brincávamos de subir e descer correndo por todos os andares do prédio. Na maioria das vezes éramos apenas nós dois e não fazíamos barulho - por isso não incomodávamos ninguém. E nem tinha tanta gente assim no prédio para incomodar.

Uma coisa que eu me lembro muito bem é de ficar na janela, em cima de um banquinho, comendo leite em pó, quietinha enquanto minha mãe dormia. O banquinho também era usado por ela para alcançar a pia para lavar louça, os cabides do guarda-roupa e a janela, como eu.

Minha vida foi sempre confusa. Mamãe era portadora de deficiência física, com sua baixa estatura, uma anomalia caracterizada pela parada prematura do crescimento. Não dava para dizer que era anã, pois tinha os membros proporcionais, mas era bem baixinha. Para todos que a viam, era anã - e eu convivi com a surpresa das pessoas que passavam na rua e suas exclamações:

- Olha a anãzinha!

E minha mãe, muito brava, respondia:

- Não sou anã coisa nenhuma.

Toda vez que saíamos isso acontecia. Era um mal-estar danado, com mamãe irritada me puxando pela mão. Muito, muito desagradável essa cena toda, eu morria de vergonha.

Mas a confusão maior era de quem descendíamos, nossa árvore genealógica. Os Marcondes são uma família imensa do Vale do Paraíba, de onde Monteiro Lobato se originou, os Amaral Gurgel, Ribeiro da Luz, vovô, prof. Argemiro da Luz, que entrava nas cadeias de peito aberto e sem seguranças para dar aulas aos presos. Ele também era professor de um importante colégio particular para rapazes e nome de rua em São Paulo, como tantos outros familiares com seus nomes em placas de ruas em São Paulo, Taubaté, Caçapava, Guaratinguetá, e sei lá mais onde. Eu ouvia quase todos os dias mamãe falando: - "O nosso sobrenome é tudo que temos, é a coisa mais importante."

E relembrava histórias do tio Gurgel, da tia Maria Amália, professora do Colégio Madre Cabrini, escola tradicional de São Paulo. Era tudo assim, muito pomposo. E mamãe usava o seu vocabulário de um português bem falado - e por isso também motivo de gozações nos lugares populares onde vivíamos.

Engraçado. Agora, escrevendo, percebo que junto às amigas de mamãe - como a família Godinho, as irmãs Clara e Carmem, e as poucas pessoas da família que eu conhecia - tudo parecia soar igual, natural. Foi esse contraste, que sempre esteve presente em nossas vidas, que me confundiu. Mas também foi por causa da cultura de minha mãe que eu, mesmo tendo abandonado os estudos, pude me sair bem profissionalmente. As pessoas costumam achar que eu cursei uma faculdade mas, na realidade, eu não completei nem o ensino fundamental, que no meu tempo chamávamos de ginásio.

Tempos depois, minha maior amiga, Nádia, apelidou minha mãe carinhosamente de "Marquesa", o que caiu como uma luva. Eu estudava no Colégio Boni Consilli, colégio de freiras bem severas que fazia parte da congregação Madre Cabrini, com uma bolsa de estudos fornecida por uma amiga de minha mãe, a dra. Marta Teresinha Godinho, deputada federal, secretária de governo por duas vezes no governo de Mário Covas e uma das fundadoras do PSDB. Enfim, ela e suas irmãs estiveram sempre presentes na nossa vida e continuam ainda hoje.

Eu chegava à escola pela manhã e só saía no final da tarde. Isso quando minha mãe ia me buscar no horário, pois na maioria das vezes eu ficava esperando até de noite - para minha total decepção, raiva e vergonha. Enquanto todas as outras alunas já tinham ido embora eu ainda estava ali, com uma freira que só não tinha se recolhido por minha causa, rezando para que minha mãe não me abandonasse. E o colégio ficava tão pertinho de casa e do trabalho dela.

Pior ainda era quando ela estava de folga e, mesmo assim, demorava a ir me buscar. E aparecia com o cabelo todo arrumado, vinda do cabeleleiro. Eu queria morrer. Não gostava de estudar lá. Todo mundo sabia que era pobre e que não tinha pai. Eu não era convidada para ir à casa de nenhuma menina, o que me deixava muito triste.

Certa vez eu quis participar da montagem da peça Chapeuzinho Vermelho na escola. As fantasias tinham que ser compradas pelos familiares, mas minha mãe não tinha dinheiro para isso. Na divisão dos papéis, fiquei com o do lobo mau. Sempre que havia um ensaio, a professora perguntava como estava a confecção das fantasias. Eu dava detalhes da minha, de como estava sendo feita a cabeça do lobo, como eram os seus dentes. Tudo mentira, nem minha mãe sabia de nada. Na hora da apresentação, passei uma das maiores vergonhas da minha vida.

Uma vez inauguraram um playground e, no dia da estréia, quando eu estava brincando na gangorra, a outra menina bateu sem querer com força no chão e eu caí de boca naquele ferro de segurar, quebrando o dente da frente e cortando bastante a boca. Como o Pronto- Socorro era perto, me levaram correndo, no colo. E lá estava a minha mãe. Depois que descobri que quando me machucava era levada para o Pronto-Socorro, volta e meia acontecia algum "acidente" comigo - e assim eu podia ficar com minha mãe. Uma mãe produtiva, importante e que trabalhava. Não aquela mãe louca que ficava na janela de madrugada e depois vinha o carro da polícia e nos levava para a delegacia. Lembro-me que eu sentia muito frio lá.

Tinha muita coisa, contudo, que eu também adorava: mamãe comprava e lia para mim os mais belos livros de história, me levava ao cinema e, todo mês, quando ela recebia o seu pagamento, íamos à Lancheteria Paulista, no centro da cidade. Era um programa muito chique. Uma vez, no dia do meu aniversário, a confusão noturna não terminou na delegacia. Mamãe empurrou todos os móveis para a porta e não queria abri-la de modo algum. O dia amanheceu e ela ainda estava na janela gritando. A rua ficou cheia de gente, veio ambulância, carro de polícia, bombeiro e, não sei como, até meu padrinho de batismo. O padrinho Ortêncio, que eu tanto amava, apareceu para me buscar. Ele era assim, meu herói. Minha mãe foi embora na ambulância.

Mamãe conheceu meus padrinhos na Lareira, um lugar que preparava as moças da sociedade para o casamento, ensinando boas maneiras, a bordar, a cozinhar - pois, como dizia minha mãe, quem não sabia fazer, não saberia mandar. E minha madrinha Cacilda era a cozinheira do lugar.

Meu padrinho trabalhava nas Indústrias Matarazzo. Minha mãe sempre dizia que os havia escolhido pela retidão de caráter de ambos. Mamãe acreditava que padrinhos de batismo eram os segundos pais, e eles realmente foram de total importância na minha formação.

Almoço aos domingos na casa deles era sagrado. Não só para nós como também para outros parentes deles. Eu era muito paparicada pelo meu padrinho, tinha minhas regalias até em relação à neta dele, pelo menos essa era a impressão que eu tinha. Durante toda a minha infância e adolescência era para lá que eu ia ou, muitas vezes, fugia sem avisar minha mãe. Fazia isso quando queria um pouco de paz, conforto e até alimentação.

Não sei quando nem como aconteceu pela primeira vez. Lembrome, infelizmente, cada detalhe até hoje, como se fosse um take cinematográfico. Do nada, vem à minha mente esta visão: um homem em pé, próximo à nossa cama, se limpando, limpando o pênis na nossa colcha. O apartamento estava na penumbra, a janela fechada, a única luz, e era do dia, vinha da porta do banheiro aberta. Depois corta e eu vejo o homem descendo as escadas do prédio correndo. Ele era um dos motoristas do Pronto-Socorro onde minha mãe trabalhava.

Não sei como ou quantas vezes eu abri a porta e os detalhes de como o fato aconteceu. Minha querida e competente psicóloga, Monika von Koss, diz que nos lembramos apenas daquilo que conseguimos suportar. Moramos nesse prédio até meus oito anos de idade.

*

"Estou Viva, Não Uso Mais Drogas - O Inferno de Bell"
Autora: Bell Marcondes
Editora: Semente
Páginas: 368
Quanto: R$ 34,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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