Livraria da Folha

 
05/05/2010 - 11h27

Ex-diretor do "El País" lista 9 princípios para o jornalismo; leia trecho

da Livraria da Folha

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Cebrián ressalta a importância do caso Watergate e lista nove normas da profissão
Cebrián ressalta a importância do caso Watergate e lista nove normas da profissão

Em "O Pianista no Bordel" (Editora Objetiva, 2010), o ex-diretor-fundador do jornal espanhol "El País" Juan Luis Cebrián agrupa uma coletânea de ensaios sobre o ofício da profissão de jornalista, nos quais recupera personagens e momentos históricos de seu país.

O veículo começou a circular em 1976, e três décadas depois Cebrián já havia atrelado sua carreira à sociedade democrática.

No trecho abaixo extraído do livro, Cebrián defende que o caso Watergate "é símbolo da independência da imprensa diante do poder político e um lembrete do papel que compete aos jornais numa democracia: revelar corrupções e manobras sujas".

Segundo ele, a partir desse fato histórico, o jornalismo cunhou-se como um "contrapoder". Ou melhor, um poder que requer compromissos e princípios. Cebrián esclarece as nove normas --que, segundo ele, poderiam se resumir à verdade e à independência-- que guiam a condição de jornalista. Não cumpri-las, equivale a desertar da própria profissão.

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O mito de Watergate

Em 1972, uma patrulha da polícia local de Washington descobriu uma operação de espionagem no escritório eleitoral do Partido Democrático. Com este episódio, em princípio relativamente menor, começava aquele que provavelmente constitui o mais aberto enfrentamento já ocorrido entre o poder político e um meio de comunicação: o caso Watergate toma emprestado o nome do hotel em que ocorreram os primeiros acontecimentos - a espionagem aos escritórios eleitorais do Partido Democrático - e representou o fim da carreira política do presidente Nixon. Desde que ele foi obrigado a se demitir, em agosto de 1974, em consequência dos escândalos que se seguiram ao ocorrido, o nome desse luxuoso complexo de escritórios e lojas comerciais do distrito de Columbia ficou escrito em caracteres indeléveis na mitologia do jornalismo.

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Em ensaios, ex-fundador do "El País" analisa o ofício do jornalista
Em ensaios, ex-fundador do "El País" analisa o ofício do jornalista

Watergate é símbolo da independência da imprensa diante do poder político e um lembrete do papel que compete aos jornais numa democracia: revelar corrupções e manobras sujas. A partir de então, cunhou-se a concepção do jornalismo como um "contrapoder", teoria que foi formulada explicitamente pelo presidente francês Valéry Giscard d'Estaing e que foi usada repetidas vezes pelos cientistas políticos. Embora muitas vezes tenha defendido teses semelhantes, na verdade não estou certo de que os meios de comunicação atuais não representam antes um aspecto ou uma representação do próprio poder ou pelo menos de seus entornos. A mitologia acerca da independência dos meios de comunicação pode e deve ser mantida, desde que não se transforme numa autêntica religião. Muitas vezes, eles se comportam como defensores das liberdades diante dos abusos dos que mandam, mas em outras ocasiões, convertem-se no epicentro da arbitrariedade e do desdém pelos direitos dos cidadãos.

Durante as últimas décadas, a imprensa em geral, e a dos Estados Unidos em particular, sofreu transformações consideráveis. Desde os avanços tecnológicos até as mudanças que ocorreram na estrutura de propriedade dos jornais, hoje em dia tudo, ou quase tudo, parece diferente. A competição com os novos meios eletrônicos levou, na época, os jornais a diminuir o peso de suas reflexões ao mesmo tempo em que o número de suas páginas aumentava, assim como o uso das cores em suas fotografias, primeiro nos anúncios, depois na informação. Algumas publicações legendárias, como o "Times" de Londres, trocaram sua austera aparência de qualidade - antes representada até mesmo pela textura especial do papel - pela roupagem alegre do sensacionalismo, enquanto a imprensa vespertina agonizava, vítima do tempo que seus eventuais leitores preferiam dedicar à televisão. Mais tarde, surgiram os suportes digitais, com a consequente fragmentação da audiência, e a internet, com sua vocação de universalidade individualizada. Tudo isso levou a uma acelerada e crescente concentração das empresas que, em seguida, ultrapassaram a propriedade dos meios de comunicação para arriscar-se no campo dos sistemas de lazer e entretenimento. O tamanho começou a ser uma condição para a sobrevivência, e a tradição de propriedade familiar do setor deu lugar à inclusão dos mais importantes jornais do mundo na lista das empresas cotadas no mercado de ações.

O "Washington Post" tinha acabado de entrar no mercado de capitais precisamente na época em que sua acionista de referência, Katherine Graham, que herdou o diário do marido, foi obrigada a enfrentar inúmeras pressões para que puxasse as rédeas dos repórteres do jornal encarregados da investigação de práticas delituosas na Casa Branca. Os advogados e gestores do "Post" relembravam sem cessar os perigos de uma confrontação aberta com o poder que poderia redundar em prejuízos para os acionistas, prejudicando o mercado publicitário e colocando em risco a renovação das concessões de licenças de televisão que a empresa detinha. Contudo, a sra. Graham, que tinha enfrentado decisões semelhantes pouco mais de um ano antes, relacionadas aos famosos Papéis do Pentágono1, não hesitou em apoiar as teses do diretor Ben Bradlee e de sua equipe de redatores, a favor de dar continuidade à investigação e publicidade aos fatos apurados. O argumento que sustentava sua decisão era simples: um jornal é uma empresa mercantil e como tal deve satisfações a seus proprietários e a seus clientes, mas também é um órgão de opinião pública e, portanto, sua obrigação é servir os cidadãos acima de tudo. Esta é a filosofia que triunfou então, da qual nos orgulhamos, às vezes em vão, milhares de jornalistas de todo o mundo. Hoje, cabe perguntar sobre sua vigência diante das modas do momento, das novas realidades e das diversas ameaças que pairam sobre a liberdade de expressão. Muitas dessas tentativas tratam de fundamentar sua ação na luta contra o terrorismo, que é um dos chavões mais usados por todo tipo de governo na hora de justifi car abusos e violações, alguns muito graves, dos direitos humanos. Mais recentemente, a crise econômica também serviu para incentivar a paixão censória de milhares de burocratas do mundo inteiro. Organismos reguladores encarregados de vigiar as transferências nos mercados de capitais deixam de cumprir tarefa tão necessária e dedicam-se, não raro, a perseguir a liberdade de informação, em vez de descobrir os malfeitores. Este é o caso da Comissão Nacional do Mercado de Valores da Espanha que, em seus delírios legislativos, pretende pura e simplesmente proibir e castigar a existência e a divulgação de boatos, empenho tão louvável quanto estéril e que serve de introdução à insidiosa discussão sobre o momento em que um boato se transforma em notícia e em que uma notícia merece ser classificada como simples falatório ou murmúrio.

Todas essas questões reclamam uma investigação permanente. Bill Kovach e Tom Rosenstiel, dois jornalistas e especialistas em comunicação que se dedicaram durante anos a refletir sobre elas, conversaram com centenas de colegas, leitores, empresários, anunciantes e cidadãos comuns, recolhendo opiniões, organizando debates e tratando de averiguar, em meio à polêmica, quais seriam os elementos do jornalismo, a matéria-prima que, tal como o fogo, a água, o ar e a terra para os antigos, constitui o núcleo dos fundamentos da existência de nossa profissão. Sua experiência, recolhida em livro2 de leitura obrigatória para os que se interessam pelo assunto, destaca que o jornalismo de hoje, incluídas as transformações propiciadas pela internet, continua a ter alguns princípios básicos que não somente o identificam como profissão, mas também constituem um compromisso daqueles que o exercem. Afastar-se deles equivale a desertar da própria condição de jornalista. Estas normas foram reunidas em nove pontos que não resisto a reproduzir aqui:

1. A primeira obrigação do jornalismo é a verdade.
2. Sua primeira lealdade é para com os cidadãos.
3. Sua essência é a disciplina da verificação.
4. Seus profissionais devem ser independentes dos fatos e das pessoas sobre os quais informam.
5. Deve servir como um fiscalizador independente do poder.
6. Deve oferecer-se como tribuna para as críticas públicas e para o compromisso.
7. Deve se esforçar para fazer do que é importante algo de interessante e oportuno.
8. Deve seguir as notícias de forma ao mesmo tempo exaustiva e proporcional.
9. Seus profissionais devem ter direito a trabalhar conforme lhes dita a consciência.

Seria difícil dizer mais sobre os direitos e deveres do jornalismo profissional em nossos dias, em tão poucas frases. Claro que estes nove mandamentos se resumem facilmente em dois, pois desde as tábuas de Moisés não existe um decálogo que não seja passível disso: o jornalismo deve ser fidedigno e independente.

1 Os Papéis do Pentágono eram os documentos secretos do Departamento de Defesa dos Estados Unidos sobre a participação do país na guerra do Vietnã intitulados: "A tomada de decisões dos EUA no Vietnã, 1945-1968." Eles demonstravam que o governo estava enganando a população a respeito da guerra e documentavam minuciosamente como quatro presidentes e seus respectivos governos haviam ocultado seus planos bélicos durante 23 anos. Ficaram famosos quando um ex-funcionário do Departamento de Defesa e do Departamento de Estado, Daniel Ellsberg, resolveu torná-los públicos, em 1971. O diretor do "Post" pediu à editora, Katherine Graham, que decidisse se deviam ou não publicar os papéis. Ao responder que sim, ela entrou para a história do jornalismo, e o "Post", até então um diário medíocre e complacente, passou a ser o principal rival do "New York Times". Richard Nixon tentou bloquear sua publicação com a ajuda de juízes federais. "Quem deixou vazar esses papéis tem que ser queimado na fogueira", disse ele numa conversa que, gravada no Salão Oval, acabou caindo igualmente no domínio público. A decisão da Suprema Corte de permitir a publicação dos papéis, mesmo diante da demanda do governo pelo silêncio, deve ser vista como uma eterna garantia judicial para a liberdade de expressão.

2 Bill Kovach e Tom Rosenstiel, "Os elementos do jornalismo", trad. Wladir Dupont, São Paulo: Geração Editorial, 2004.

 
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