Livraria da Folha

 
22/05/2010 - 01h43

Walter Salles fez documentário sobre a adaptação de "On the Road"; leia trecho

da Livraria da Folha

Desde o final de abril, estão sendo anunciados nomes que farão parte do elenco de "On the Road", próximo filme de Walter Salles. Seu projeto mais ambicioso até o momento, o diretor o recebeu das mãos de Francis Ford Coppola, que detinha os direitos de filmagens, a proposta para realizar a adaptação do livro de Jack Kerouac em 2005.

Divulgação
Marcos Strecker retrata o cinema de Salles e a produção nacional
Marcos Strecker retrata o cinema de Salles e a produção nacional

A demora para confirmar a sua realização e a incerteza de consegui-lo demonstram a importância da obra e o desafio que o brasileiro tem pela frente. Reconhecido por seus road movies, especialmente depois de "Diários de Motocicleta", Salles enfrenta a difícil tarefa de traduzir o início do movimento "beat" nos Estados Unidos e a revolução que a contracultura causou.

Preparado para que "On the Road" se tornasse inviável, Salles registrou a pesquisa que fez para preparar o roteiro de seu longa. Entrevistou os personagens ainda vivos, pessoas que os conheceram ou viveram aquela época e os envolvidos em todas as outras adaptações que naufragaram. Este registro deu origem ao documentário "Searching for On the Road".

O documentário é um plano b do cineasta. Caso não conseguisse transportar o livro de Kerouac para as telas, teria o filme sobre a dificuldade para fazê-lo. Como o projeto saiu do papel deverá ser lançado antes da adaptação mostrando a jornada para que esta acontecesse.

O jornalista Marcos Strecker assumiu a responsabilidade de biografar e analisar toda a produção de Walter Salles, o resultado é "Na Estrada". No livro, Strecker mostra o renascimento do cinema brasileiro e a importância do diretor para este acontecimento. Falando de seus primeiros trabalhos, de sua vida pessoal e reunindo textos publicados na Folha de S.Paulo, a cinebiografia de Salles dá destaque ao projeto que promete marcar sua carreira e o cinema.

Leia abaixo trecho que narra o nascimento do documentário sobre a adaptação de "On the Road":

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Searching for on the road: o documentário

Para melhor compreender o longa On The Road, é útil estudar primeiro o documentário que serviu para fundamentá-lo. Desde o início do projeto, anunciado em 2005, Walter passou a fazer um extenso e rico documentário sobre o livro e sobre a geração beat: Searching For On The Road (Em Busca de On The Road). O diretor refez a rota trilhada de leste a oeste dos Estados Unidos por Kerouac, entrevistou os poetas que participaram do movimento beat, encontrou pessoas que são mencionadas no livro e conversou com artistas contemporâneos influenciados por eles.

Não é a primeira vez que Walter faz esse trabalho de pesquisa. "A direção cinematográfica é antes de mais nada uma questão de precisão", define. Em Diários de Motocicleta, ele já tinha realizado um filme para servir de guia a atores e equipe. Mas era um projeto de trabalho, interno. Já Searching For On The Road é muito mais ambicioso, autoral. Serviu também para o diretor compreender melhor os significados e a importância atual do livro.

O formato final desse documentário vai depender do destino do projeto com Coppola. Se o longa não se realizar, pode se tornar uma reflexão sobre a impossibilidade de filmar On The Road. Não seria a primeira vez. Como vimos, muitos nomes de peso estiveram envolvidos com essa adaptação - Barry Gifford, Michael Herr e Russel Banks (que conheceu Kerouac pessoalmente) são só alguns.

Gifford, autor que colabora com David Lynch, escreveu o roteiro de um projeto que chegou muito perto de se concretizar nos anos 90, com direção de Gus Van Sant e Johnny Depp no elenco. A Columbia Pictures produziria, mas houve um desentendimento com Coppola. O próprio Coppola, com seu filho Roman, esboçou um projeto - aquele que seria filmado em preto e branco, em 16 mm. Em 2001, Joel Schumacher era o cineasta cotado para a direção. Brad Pitt seria Dean Moriarty e Billy Crudup (de Quase Famosos) interpretaria Sal Paradise. Os atores Colin Farrell e Ethan Hawke também foram cogitados.

Não é raro que projetos importantes tenham tantos talentos envolvidos ou que atravessem os anos como projetos em evolução. Mas On The Road é diferente. O histórico acidentado do longa tem a ver com a importância de Coppola como criador e produtor e, principalmente, com a relevância do livro para a cultura contemporânea. Fazer jus às expectativas que cercam essa adaptação será uma grande tarefa. Uma das funções de Searching For On The Road é documentar essa busca, em registro pessoal.

O filme reúne um material extenso e rico, com 24 entrevistas. Antes de mais nada, dá voz a alguns dos nomes consagrados da geração beat. Gary Snyder é um deles. Ex-estudante de antropologia, fazia parte do grupo de São Francisco que acolheu Kerouac e Allen Ginsberg, nos anos 50. Naquele ambiente, em 1955, Ginsberg faria a primeira leitura pública do poema Uivo (Howl), que se tornaria um marco do movimento - também conhecido como o "Renascimento" de São Francisco.

Snyder, nascido em 1930, foi figura central do movimento beat. Defendia, em particular, valores budistas (assim como Kerouac) e uma vida simples, perto da natureza. Foi precursor do pensamento ecológico e defensor das culturas ameríndias. Ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1975 e continua até hoje fiel a suas convicções originais.

Michael McClure é outro que participou das leituras de São Francisco, em outubro de 1955, ao lado de Ginsberg e Snyder. É autor da canção "Mercedes Benz", um libelo contra valores materialistas, popularizado na voz de Janis Joplin. Como Snyder, McClure valoriza a natureza, mais especialmente a "consciência animal".

Outro nome do núcleo inicial é Lawrence Ferlinghetti, autor de Um Parque de Diversões da Cabeça (A Coney Island of the Mind, 1958). Ferlinghetti também é pintor, editor e poeta e tem papel central na
comunidade de São Francisco, onde o movimento floresceu. Criou a revista e a mítica livraria homônima City Lights (Luzes da Cidade), que amparou os escritores beat. Foi o editor da primeira edição de
Uivo, que lhe rendeu um processo por obscenidade.

Entre os nomes "históricos" que participam de Searching For On The Road está Carolyn Cassady, a mulher de Neal Cassady (retratada como Camille, no romance). Ela vive na Inglaterra e escreveu suas memórias sobre o período tardiamente, nos anos 90: Off The Road:Twenty Years With Cassady, Kerouac and Ginsberg (Fora da Estrada: 20 Anos com Cassady, Kerouac e Ginsberg). Outra é Joyce Johnson, escritora natural de Nova York, que conhecia Ginsberg e foi namorada de Kerouac. Foi com ela que o escritor rumou para uma banca de jornais em setembro de 1957, em Nova York, para ler em primeira mão a resenha de Gilbert Millstein publicada no The New York Times. Essa crítica inicial selou o destino do livro. Joyce conheceu de perto o efeito destrutivo que a fama inesperada e surpreendente causou no escritor. Colaboradora de revistas de prestígio como The New Yorker, é autora de dois livros de memórias (Minor Characters e Missing Men) e de uma coletânea de sua correspondência com Kerouac (Door Wide Open).

Hettie Jones, que foi mulher de LeRoi Jones (poeta negro beat, depois rebatizado de Amiri Baraka), é autora da biografia How I Became Hettie Jones (Como Me Tornei Hettie Jones), em que narra os bastidores do movimento nos anos 50. É uma figura humana rica no documentário. Desmonta alguns mitos que se criaram sobre as figuras de proa no grupo, utilizando um olhar crítico, mas não rancoroso. Ela viveu o período com intensidade. De uma família de classe média, formou com LeRoi Jones um casal emblemático na vida boêmia do Greenwich Village, em Nova York, que acolhia os escritores beat com generosidade. O casamento inter-racial, um símbolo na época, ruiu quando LeRoi passou a radicalizar sua militância no movimento negro.

Já a pesquisadora e professora Ann Charters, que acompanha a geração beat desde a famosa apresentação da Six Gallery, em São Francisco (1956), foi amiga de Jack Kerouac e é autora de uma biografia importante do escritor, Kerouac (1973). Também participa do documentário o compositor e músico David Amram, que trabalhou com grandes nomes do jazz e conviveu com Kerouac, Ginsberg e Corso. Já Robert Stone, jornalista e escritor premiado, foi amigo de Kerouac e viveu de perto as agitações dos anos 60. É autor de Quem Vai Fazer a Chuva Parar?.

Num depoimento especial, o documentarista D. A. Pennebaker, que renovou o documentário americano nos anos 60, ao lado de Robert Drew, contribui para explicar a mudança de paradigma nos filmes da época, em especial na gravação de shows. Os dois participaram do direct cinema (cinema verdade), movimento focado em temas políticos e musicais. Como seu inspirador russo, dos anos 20 (Dziga Vertov), o direct cinema valorizava a agilidade e o registro naturalista, em detrimento da edição.

Pennebaker é autor de alguns dos principais documentários musicais da história do cinema, como Dont Look Back (1967), com Bob Dylan. Também registrou apresentações antológicas, como Monterey Pop (1968), quando o Monterey International Pop Festival lançou as carreiras de Janis Joplin e Jimi Hendrix.Para Pennebaker, os shows deveriam ser gravados com a urgência do momento, cruamente. Fazia questão de registrar todas as músicas em sua integralidade e rejeitou a comercialização que logo cercou os ícones da época.

Além de Pennebaker, nomes essenciais do cinema que devem suas carreiras à irradiação do movimento beat também comentam On The Road, como Dennis Hopper, Wim Wenders e o ator Scott Glenn. Johnny Depp lembra a participação que teria em uma das adaptações. Também há o depoimento de Sean Penn, um dos nomes mais talentosos de sua geração, fortemente influenciado pela contracultura; e Matt Dillon, que teve sua carreira lançada por Coppola, nos anos 80.

Os músicos Lou Reed, David Byrne, Laurie Anderson, Wynton Marsalis e Philip Glass comentam a influência de Kerouac e do movimento beat em suas carreiras.

Há ainda depoimentos do escritor Dave Eggers, um dos principais nomes da literatura americana contemporânea, do guitarrista Bob Weir (um dos fundadores do Grateful Dead) e de Toby Thompson, autor de Sixties Report, um livro que narra os acontecimentos da época. Lou Reed encerra lendo trechos do poema "The Fall of America", de Allen Ginsberg.

É um material riquíssimo, que joga luz sobre os ecos do movimento até hoje. Também traz cenas raras de Kerouac na televisão. Os depoimentos de amigos e colaboradores humanizam a figura do escritor. Também deixam patente o efeito destruidor do sucesso repentino que o autor conquistou em 1957. Seu final foi melancólico, nos anos 60, e fica evidente como sua visão generosa foi subvertida, como uma maldição, por aqueles que atribuíram a ele a responsabilidade pelas mudanças nas quais teve papel central.

O documentário, pelo conjunto expressivo de entrevistas e pela força de suas imagens, já seria importante por si só. Mas o que esse material representa para Walter pessoalmente e para sua visão de cinema parece ainda mais importante. Searching For On The Road, narrado em primeira pessoa, é a expressão dos questionamentos de um cineasta. Nunca Walter se expôs tanto. O documentário pode até receber a narração do próprio diretor. (Mais provavelmente, será narrado por Gael García Bernal.) De qualquer forma, esse mergulho interior está em sintonia com a definição dada por Wim Wenders para os road movies: "Neles, você precisa se expor, não é possível se esconder. Você vive uma aventura, deve estar preparado para viver". Vale para o público, vale para o autor.

On The Road foi escrito em um momento de medo e insegurança. Mas suas mensagens de energia e vitalidade são claras e contagiantes. Viva, experimente, confronte, siga a estrada. O filme também faz esse convite.

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Na Estrada
Autor: Marcos Strecker
Editora: Publifolha
Páginas: 336
Quanto: R$ 49,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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