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08/10/2006 - 02h30

Conflito global está em gestação no Oriente Médio, diz historiador

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MARCELO NINIO
da Folha de S.Paulo

Três fatores explicam o momento e a localização dos conflitos que fizeram do século 20 o período mais sangrento da história: volatilidade econômica, desintegração étnica e declínio de um império. Todos eles estão presentes no Oriente Médio de hoje, onde um novo conflito global está em gestação. A conclusão, que levou à pessimista projeção, é fruto das pesquisas feitas pelo historiador escocês Niall Ferguson, da Universidade Harvard (EUA), para seu mais novo livro "War of the World" (guerra dos mundos).

Nas 816 páginas de seu livro, que já virou documentário na TV britânica, Ferguson usa seu talento de polemista para desfazer o que chama de "mitos" sobre o século 20 --como o de que a Guerra Fria foi uma "longa paz"--, em meio a uma detalhada análise dos principais conflitos do período. Em entrevista à Folha por telefone, o prolífico historiador de 42 anos --oito livros publicados, participação em uma dúzia de outros e duas biografias em produção, uma delas de Henry Kissinger-- falou sobre as "guerras do mundo", do passado e do futuro.

FOLHA - O que o levou a escolher esse título para o seu novo livro?
NIALL FERGUSON - O livro, obviamente, pega emprestado o título do livro de H.G. Wells "A Guerra dos Mundos". O que Wells imaginou como sendo resultado da invasão de marcianos, aconteceu sem nenhuma necessidade de extraterrestres, porque nós destruímos nossas cidades e travamos guerras uns contra os outros no século 20, que tiveram exatamente o tipo de conseqüência destrutiva que Wells imaginou. "A Guerra dos Mundos" começa com Londres sendo devastada por invasores de outro planeta. O que aconteceu no século 20 foi que uma cidade após a outra foi devastada por violência cometida por seres humanos, não por extraterrestres. E a pergunta-chave é: por que o século 20 foi tão violento, quando em outros aspectos foi o mais progressista da história? Minha resposta é que, periodicamente, em certos lugares e certos períodos, homens trataram outros homens como se fossem extraterrestres, como se fossem membros de outra espécie. Os alemães usaram o termo "subumanos". E essa idéia, de que se está lutando não com outros seres humanos, mas com membros de uma espécie diferente, é muito perigosa. É o momento em que as pessoas começam a usar esse tipo de linguagem para falar de outros seres humanos, como subumanos e vermes. É quando eles tendem a matar, não apenas membros de suas forças armadas, mas a todos. A idéia de que é possível ver outros seres humanos como extraterrestres é muito importante no livro. É mais óbvio em relação às teorias raciais, como a nazista. Mas não é exclusividade dos nazistas. O que tento mostrar no livro é que em todos os conflitos esse tipo de linguagem tende a aparecer. Os americanos viam os japoneses como subumanos durante a Segunda Guerra Mundial. Há muitos outros exemplos no livro.

FOLHA - Apesar de tudo o que já sabia sobre o século 20, o sr. disse que foi surpreendido ao fazer a pesquisa para o livro. Pode dar um exemplo?
FERGUSON - Uma das coisas que realmente me surpreenderam foi a extensão com que a violência organizada e em grande escala continuou durante a Guerra Fria. Convencionalmente, os historiadores pensam na Guerra Fria como uma longa paz, porque não houve uma guerra entre as superpotências. Mas eu cheguei à conclusão, quando escrevia o último parágrafo do livro, que ela foi bastante quente em alguns países. Na Guatemala, no Camboja, no Vietnã e em Angola, por exemplo, não houve nem guerra fria nem longa paz, mas altos níveis de violência. Ir à Guatemala e ver os locais onde centenas de milhares de pessoas foram assassinadas, ir ao Camboja e ver os campos da morte, foram experiências profundas para mim. Me fizeram perceber que houve uma Terceira Guerra Mundial, que na verdade foi uma Guerra do Terceiro Mundo. E as pessoas que viviam na América, na Europa Ocidental ou até na União Soviética viram muito pouco dessa guerra.

FOLHA - Dos três fatores que explicam as guerras do século passado, qual deles é mais persistente hoje?
FERGUSON - Dos três fatores, volatilidade econômica parece ser o fator que o mundo mais conseguiu reduzir. Nos últimos dez ou 15 anos, as flutuações nas principais economias do mundo foram muito reduzidas. Houve poucas recessões e os preços e PIBs estiveram relativamente estáveis. Outras grandes economias, como a do Brasil, tiveram desempenhos significativamente melhores. As políticas econômicas melhoraram pelo mundo, sem dúvida, se comparadas com as primeiras décadas do século passado ou mesmo com os anos 70. Mas os outros dois fatores continuam bastante presentes. Sociedades multiétnicas correm o risco de desmoronar em guerras civis. E o declínio de um império, que é como eu vejo os EUA, poderia ter sérias conseqüências, como no Iraque. É claro que a volatilidade econômica pode voltar. Pode ser que estejamos apenas atravessando uma fase de sorte da história econômica.

FOLHA - A globalização tem sido um fator de estabilização?
FERGUSON - Certamente [a globalização] foi algo positivo em termos de crescimento econômico. Mas não podemos ser ingênuos sobre isso. A última era de globalização, até 1914, também foi boa para o crescimento econômico, mas duas coisas são importantes: uma é que os benefícios da globalização sejam distribuídos com equilíbrio. Sociedades podem crescer rapidamente, mas se tornam mais desiguais. A outra coisa é que a globalização pode causar tensões. Um exemplo é a imigração em massa que vem a reboque e que cria o tipo de sociedade multiétnica que o século 20 mostrou serem tão instáveis. Se observarmos os padrões de imigração para os EUA ou para a Europa ocidental veremos que, da mesma forma que aconteceu antes de 1914, a globalização está criando grandes cidades multiétnicas. E eu tento mostrar no livro que lugares como esses são estáveis quando as coisas vão bem, mas tornam-se muito instáveis durante crises, sejam crises militares ou econômicas. A globalização, portanto, bem como seu par político, o império, tem benefícios e custos. Não é essencialmente um fenômeno estabilizador. O processo que chamamos de globalização tem um dinamismo que é difícil de prever e que pode gerar reações violentas. Um bom exemplo disso é a hostilidade à imigração, que parece ser uma característica de países que passaram por uma fase de globalização.

FOLHA - O sr. diz que os EUA são um império "em negação" e que isso é perigoso. Por que?
FERGUSON - Esse foi um argumento de meu último livro, "Colossus" (colosso), no qual digo que os EUA são um império de fato, mas um império em negação, o que é algo incomum, já que os impérios geralmente têm orgulho em serem impérios. O argumento era o de que um país poderoso pode ser menos eficaz como império do que se esperaria. Os EUA são muito ricos, com sua economia de US$ 12 trilhões, têm mais armas do que qualquer outro país do mundo, mas ainda assim, como estamos vendo no Iraque e no Afeganistão, é muito incompetente em impor sua autoridade nos países turbulentos que invade. "Colossus" trata dessa questão: por quê os EUA são menos bons como império do que, por exemplo, o império britânico era há cem anos? E quando digo "bons" quero dizer eficientes. Acho que uma das razões é que os americanos se recusam a aceitar que estão no jogo do império. Eles acham que podem entrar no Iraque, se livrar do vilão, fazer eleições e voltar para casa, tudo isso num período de três ou quatro anos, ou seja num mandato. Isso é uma fantasia total. Não há jeito de conseguir esse tipo de transformação em tão pouco tempo. A lição é que se você quer realmente mudar as instituições políticas de um país como o Iraque, são necessários 40 anos, talvez mais. E são necessários muito mais soldados e dinheiro do que os EUA se dispuseram a investir. Os EUA estão se portando como um império bastante ineficiente, apesar de sua riqueza.

FOLHA - O sr. diz que os três fatores de instabilidade estão presentes hoje no Oriente Médio. Um conflito global está em gestação?
FERGUSON - Estou pessimista. Se meus argumentos em "A Guerra do Mundo" estão certos, o Oriente Médio tem hoje todos esses fatores, volatilidade econômica, desintegração étnica e um império em declino, os EUA. O problema é que, embora o Oriente Médio pareça violento hoje, poderá ficar muito mais. As guerras na região foram relativamente pequenas até agora, organizações terroristas geralmente não matam muitas pessoas e a única grande guerra foi a Irã-Iraque. As outras foram curtas e com poucas baixas. Meu medo é o de que tenhamos no futuro próximo um grande conflito. Poderia ser entre [muçulmanos] xiitas e sunitas, ou entre árabes e judeus. Poderia ser uma nova guerra Irã-Iraque, mas em escala maior e desta vez se estendendo ao resto da região. Esse é o meu cenário de pesadelo, mas claro, é o futuro, e historiadores não podem prever o futuro. Mas é difícil ser otimista. O Oriente Médio hoje parece muito com a Europa Central e Oriental da década de 30: uma região prestes a explodir.

FOLHA - A saída dos EUA do Iraque hoje reduziria ou aumentaria esse risco?
FERGUSON - Acho que a dificuldade no momento é que os EUA têm tropas suficientes no Iraque para exercer algum poder policial, mas não suficientes para estabilizar o país. Principalmente em Bagdá, onde está a maior parte da violência. Se os EUA se retirassem a guerra civil escalaria bem rapidamente. Infelizmente, com 140 mil soldados, não vejo como os EUA possam fazer mais do que reduzir um pouco o ritmo dessa escalada de violência sectária. É uma situação bastante insatisfatória e eu acho que ela remete a 2003, quando foi decidido no Departamento de Defesa que isso poderia ser feito com uma força pequena após a fase de combates. Esse foi um grande erro. E estamos vivendo suas conseqüências.

FOLHA - Em seu livro o sr. diz que a importância da Ásia para a eclosão da Segunda Guerra é geralmente negligenciada. A tensão na região continua a ser um fator de preocupação?
FERGUSON - É difícil prever se veremos a volta do conflito na Ásia em nosso tempo, caso os EUA deixem de ser o ator dominante na região. Obviamente há muitos motivos para ficarmos nervosos com a Coréia do Norte e o problema de Taiwan permanece sem solução. E acho que a animosidade entre o Japão e a China está num nível muito mais alto do que a maioria das pessoas no Ocidente percebe. E podemos estar bem mais próximos de uma corrida armamentista nuclear na Ásia do que imaginamos, se o Japão concluir que já não pode confiar nos EUA para sua segurança nacional.

FOLHA - Pode-se dizer que a tensão é, em grande parte, herança da Segunda Guerra?
FERGUSON - Não há razão histórica para esperar que o Extremo Oriente seja uma região de paz perpétua. No início do século 20 era uma das grandes zonas de conflito e poderia voltar a ser em breve. Na Ásia a Segunda Guerra Mundial começou bem antes de 1939. Certamente já havia começado em 1937, quando houve confrontos em grande escala entre Japão e China na Ponte Marco Polo [perto de Pequim]. Para alguns ela começou até antes, na Manchúria, em 1931. A Segunda Guerra não começou necessariamente onde pensamos. Na Ásia ela já estava bem avançada quando a Alemanha invadiu a Polônia [1939]. Além disso, essa guerra entre Japão e China, que em certa medida foi uma guerra civil chinesa, entre nacionalistas e comunistas, foi um acontecimento muito importante, que estudiosos ocidentais tendem a negligenciar. Nós esquecemos que havia mais japoneses na China do que americanos no Pacífico. E que esse grande Exército japonês passou boa parte do começo da década de 40 travando uma malsucedida guerra de atrito dentro do continente chinês. Ou seja, é preciso entender que este é um conflito longo entre o Japão, densamente povoado, muito avançado economicamente, uma civilização insular, e a China, que é profundamente diferente, uma civilização continental. Essa tensão tem uma importância histórica enorme e poderia ressurgir. Eu certamente senti isso quando visitei o Japão e a China no ano passado. Nos dois países há uma consciência aguda do persistente ressentimento e dos antagonismos mútuos. Nenhum dos dois lados esqueceu a Segunda Guerra Mundial. Nesse ponto, foi desconfortável conversar sobre o futuro nos dois países. É surpreendente para um europeu ouvir as pessoas falarem com tamanho nacionalismo e até xenofobia sobre seus vizinhos.

FOLHA - Em depoimento à Folha nos cinco anos do 11 de Setembro o sr. disse que não acreditava no fim da era americana, mas no começo de "uma nova era americana" como resultado dos atentados. O que quis dizer?
FERGUSON - Quando escrevi um artigo para a revista "Time", tentando prever como veríamos os atentados no futuro, eu aconselhei a não descartarmos os EUA, porque embora eles sejam incompetentes como império, são muito bons como nação-Estado e como economia capitalista. Por isso, meu cenário futuro incluía um "revival" americano, que repetiria outros períodos de sucesso do país, baseados em tecnologia. Os EUA ainda têm recursos para ficar na frente de todo mundo em termos de inovação tecnológica. Minha sugestão é a de que as coisas podem dar errado no Oriente Médio, mas podem dar certo em outros aspectos. O ponto principal é o de que os impérios podem sofrer derrotas e se recuperar. Os EUA não são velhos como império, tem pouco mais de 200 anos. Isso, para padrões imperiais, é só o começo.

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