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25/11/2006 - 07h03

Líbano corre risco de novo conflito civil, diz especialista

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ANDREA MURTA
da Folha Online

É real o risco de uma nova guerra civil no Líbano. O acirramento da tensão entre o governo do premiê Foad Siniora e a oposição --da qual faz parte o grupo extremista islâmico Hizbollah-- já era suficiente para se temer que a disputa gerasse um conflito armado mesmo antes do assassinato do ministro da Indústria libanês, morto à tiros na última terça-feira (22). Mas o atentado certamente agrava o quadro.

A opinião é do doutor em direito internacional pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da DireitoFGV (da Fundação Getúlio Vargas) Salem Nasser, 37. Segundo ele, uma eventual queda de Siniora não deverá ser decisiva para o destino da frágil paz do país. "A ocorrência de uma guerra civil é possível, com ou sem a queda do governo".

Nasser cita, no entanto, que ainda é possível ter algum "otimismo" a respeito do risco de um novo conflito porque os libaneses "estão cansados de guerra."

Entre 12 de julho e 14 de agosto, Israel e o Hizbollah estiveram em conflito armado, até que foi estabelecido um cessar-fogo. O estopim do conflito foi o seqüestro de dois soldados israelenses pelo Hizbollah --a ação deixou ainda oito soldados israelenses e dois membros do Hizbollah mortos.

A guerra deixou mais de 1.200 mortos [em sua maioria civis libaneses] e cidades inteiras destruídas no Líbano, sem água, luz e telefone.

Desde o fim do conflito com Israel, as relações de poder entre os grupos dentro e fora do governo no Líbano se deterioraram. A crise no país se evidenciou nesta semana com o assassinato de Pierre Gemayel, 34, que, como ministro da Indústria, apoiava o governo de Siniora em sua posição contrária à influência da Síria no Líbano.

Seu funeral levou cerca de 200 mil libaneses às ruas e acabou por se transformar em ato anti-Síria nesta quinta-feira (23).

Além dos protestos nas ruas, a morte do ministro deixa o gabinete de governo de Siniora à beira do abismo. Como um ministro sunita já havia renunciado em fevereiro e outros seis ministros xiitas pró-Síria renunciaram no último mês, sem Gemayel, Siniora sobrevive a apenas um ministro de "distância" de uma queda automática --no Líbano, a saída de nove ministros derruba o governo.

Jogo de poder

E os problemas não acabam por aí. "Além da questão numérica [dos ministros], há outra, mais importante, que está ligada à legitimidade. Com a renúncia dos ministros, já não há xiitas no governo, quando estes representam a maior comunidade religiosa do Líbano --país em que a política está organizada em torno dos vários grupos religiosos", afirma Nasser.

Se internamente as dificuldades se acumulam, na política externa a situação não é mais confortável. Após o assassinato de Gemayel, a ONU aprovou a instalação de um tribunal internacional para julgar os acusados pelo assassinato do ex-primeiro-ministro do Líbano Rafik al Hariri, morto em 2005 em um atentado à bomba, e por outros assassinatos.

Enquanto os Estados Unidos e boa parte da comunidade internacional aprovam a criação do tribunal, vários grupos suspeitam que a manobra é, na verdade, destinada a manipular o Líbano e a Síria --acusada de estar por trás da morte de Hariri.

"Não tenho dúvidas de que o interesse dos Estados Unidos na formação do tribunal é de exercer pressão contra a Síria. Existe um jogo de poder de grandes dimensões na região e os adversários aos americanos são a Síria e o Irã", afirma Nasser.

Para esclarecer os fatores que podem levar os libaneses a uma nova guerra, a Folha Online ouviu Salem Nasser com exclusividade. Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Folha Online - Que significado o assassinato do ministro da Indústria, Pierre Gemayel, assume hoje? O que este fato mudará em meio à crise que o Líbano já enfrenta?

Salem Nasser -
A reação de todos, no Líbano e fora dele, é proporcional à dimensão do acontecimento. A grande importância do evento está conectada ao caráter delicado e perigoso da conjuntura política libanesa nesse momento.

A crise política vinha se agravando desde o fim da guerra de julho [entre Israel e o Hizbollah], mas já se anunciava, nos bastidores, durante o conflito. Alguns dos pontos objeto de impasse hoje já eram controvertidos antes mesmo do início da campanha militar israelense contra o Líbano. Os campos políticos em disputa iam gradualmente se afastando de um consenso.

Nos discursos, as partes se acusavam, cada vez de modo mais explícito, de servir a interesses estrangeiros. Nas ações, os ministros da chamada minoria, ou da oposição, deixaram o governo, que insistiu em aprovar a formação de um tribunal internacional para investigar e julgar o assassinato de Rafik al Hariri. A oposição já estava se preparando para demonstrações de protesto contra o governo nas ruas.

É nesse ambiente de nervos à flor da pele que advém a morte de Pierre Gemayel. Esse crime aproxima o Líbano do abismo de uma nova guerra civil, a qual todos os componentes do mosaico político e religioso libanês dizem estar dispostos a evitar a qualquer custo.

Folha Online - Com a renúncia de sete ministros e a morte de Gemayel, o governo do primeiro-ministro Fouad Siniora corre sério risco de cair. A oposição poderá aproveitar o momento para forçar uma queda?

Nasser
- Na realidade, a legitimidade do governo já estava abalada antes da morte de Pierre Gemayel e, naturalmente, esse governo poderia não se sustentar e cair.

O governo resulta de um acordo entre as várias forças políticas libanesas, acordo ao qual se chegou no período posterior à retirada da Síria [2005] e às eleições legislativas que resultaram em vitórias expressivas tanto da corrente que se apresentava como oposição à Síria quanto do Hizbollah e seus aliados.

Era um governo que pretendia ser de consenso nacional e que devia enfrentar várias questões espinhosas sobre as quais havia desacordos.

Ocorre que o cenário político mudou após a guerra de julho. O campo da minoria no governo --Hizbollah, o partido Amal, liderado pelo presidente do Parlamento libanês, e o movimento liderado por Michel Aoun-- passa a demandar reformulações do governo para que ele traduza essa nova realidade.

A minoria afirma que, para que este seja um governo de consenso nacional real, a oposição deveria ter uma participação maior. Com a recusa por parte dos demais segmentos do governo, a alternativa seria pedir a queda do governo e a realização de eleições legislativas antecipadas.

Não tendo sido possível o acordo entre os vários segmentos, apesar de encontros realizados com esse objetivo, os ministros ligados ao Hizbollah, a Amal e ao presidente da República renunciaram e os movimentos de oposição se preparavam para a campanha contra o governo e em prol de novas eleições.

A realidade é que não se pode dizer se o assassinato de Gemayel tende a facilitar a queda do governo ou se, ao contrário, a torna mais difícil. Parece-me que tudo depende do que vai acontecer nas próximas horas e dias. É improvável que a oposição realize manifestações neste momento.

Folha Online - Como funcionam as regras para a queda do governo com relação à composição dos ministérios?

Nasser -
Há uma questão numérica: a minoria, ou oposição, demandava um terço dos ministérios, o chamado terço "bloqueador" [9 ministros]. Este é o número de ministros que pode bloquear uma decisão do governo (ao votar contra) e esse é o número de ministros que, caso se demitam, forçam a queda do governo.

Por essa razão, há quem faça hoje o seguinte cálculo: seis ministros se demitiram, um já havia saído e agora um foi morto-- quantos faltam para que o governo caia? Mas não me parece crível que esta seja a motivação para o assassinato.

Além da questão numérica, há outra, mais importante, que está ligada à legitimidade. Um aspecto central da dúvida quanto a essa legitimidade é o fato de que, com a renúncia dos ministros, já não há xiitas no governo, quando estes representam a maior comunidade religiosa do Líbano --país em que toda a política está organizada em torno dos vários grupos religiosos.

Folha Online - A oposição pró-Síria insiste que Siniora não tem legitimidade para governar. Como o sr. vê a questão?

Nasser -
Eu começaria dizendo que é um erro dividir o espectro político libanês em pró-Síria e anti-Síria. A Síria e a relação com a Síria não são os únicos temas da política libanesa nem são os únicos ponto de conflito.

É verdade que a principal bandeira que une os vários grupos representados pelo governo libanês atual é a sua oposição à influência síria no Líbano. Essa é uma bandeira comum razoavelmente recente. Estes setores tendem a se apresentar sobretudo com anti-Síria, e talvez isso seja vantajoso tendo em vista o posicionamento [de oposição] dos Estados Unidos e de boa parte da comunidade internacional com relação a esse país.

Mas a oposição ao governo não se define como pró-Síria, apesar de ter proximidade com o país e interesses em comum. Assim como a oposição é acusada de ser instrumento da Síria e do Irã, ela acusa o governo de servir de instrumento dos Estados Unidos e de outros.

Quanto ao tema da legitimidade, ela é, hoje, discutível. Setores altamente representativos da política libanesa, não necessariamente alinhados com a oposição (como por exemplo antigos primeiros ministros libaneses), colocam em questão a legitimidade do governo e de suas últimas decisões e chamam a um verdadeiro consenso nacional.

Folha Online - Qual é o risco real de o Líbano vir a enfrentar uma guerra civil motivada por disputas pelo poder hoje?

Nasser
- A ocorrência de uma guerra civil é possível, com ou sem a queda do governo. A ocorrência de uma guerra depende do desenrolar dos acontecimentos nos próximos dias.

A população está "escaldada", mas não se sabe. O maior motivo para algum otimismo é que as pessoas estão cansadas de guerra, e em todos os campos há uma tentativa de evitar que ela aconteça.

Folha Online - Há apenas dois meses do fim da guerra com Israel e em meio às tensões atuais, como fica hoje a posição política do Hizbollah dentro do Líbano?

Nasser -
Logo depois da guerra, com a decisão de mandar tropas internacionais para o sul do Líbano e a exigência de que o Hizbollah abandone suas posições e suas armas, houve um aparente retrocesso do poder do grupo. Logo em seguida, no entanto, a leitura que se fez localmente do final da guerra --segundo a qual o Hizbollah foi o vencedor-- o grupo acabou ficando mais forte do que estava antes.

O Hizbollah e outros segmentos de oposição ao governo enxergaram o comportamento do governo durante a guerra com grande suspeita. Eles pensaram então que poderiam, em cima do prestígio que adquiriram e do apoio popular, que este era o momento de reequilibrar as forças e o governo libanês.

É importante marcar que a oposição não é o Hizbollah ou só formada com simpatizantes do grupo, mas há várias facções contra o governo.

O assassinato do ministro é em princípio totalmente contrário aos interesses do Hizbollah. O grupo fica mais acuado, porque todos os dedos começam a apontar para eles. Por isso, me parece muito improvável que eles estejam ligados aos responsáveis pelo assassinato de Gemayel.

Folha Online - O que está por trás da oposição do Hizbollah e da oposição à implantação do tribunal internacional para julgar os acusados do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik al Hariri?

Nasser
- Na verdade, no discurso oficial, os ministros ligados ao Hizbollah e à oposição, assim como grupos não-representados no governo como o do cristão maronita Michel Aoun, não dizem ser necessariamente contrários à implantação do tribunal. Nem mesmo o presidente da República diz ser contrário.

O que eles dizem oficialmente é que esse é um tema central na política externa libanesa, e assim deveria ser cuidado em um diálogo nacional --que é uma questão de representatividade real dos vários grupos sectários que compõe a cena. Então essa não é uma decisão que poderia ser tomada sem que se consulte todos os grupos.

Agora, a leitura que o governo faz disso é que esse movimento é um jogo de cena e que eles querem na verdade bloquear a formação do tribunal.

Mas ao mesmo tempo em que há questionamentos sobre a recusa da oposição ao tribunal, temos que nos perguntar porque é que o governo quer tanto sua implantação. É interessante ver como nesses tribunais internacionais há soluções muito diversas para cada situação. Para dar um exemplo, Saddam Hussein não foi julgado internacionalmente, foi julgado por um tribunal iraquiano sob leis iraquianas. Já o Líbano, que é um país muito mais estável e democrático do que o Iraque, considera-se que nem mesmo de investigar um assassinato o país é capaz sozinho.

Não podemos ser ingênuos: um tribunal também pode ser usado como elemento de pressão e instrumento dentro de um jogo político. Se observarmos as regras de funcionamento planejadas para este tribunal internacional, elas prevêem que ele terá ter funções ampliadas e muitos poderes que, para alguns, podem ser usados como meio de pressão contra a Síria e outros grupos. E isso os enfraquece no jogo político, uma vez que os coloca à mercê deste poder.

Não tenho dúvidas de que o interesse dos Estados Unidos na formação do tribunal é de exercer pressão contra a Síria. Existe um jogo de poder de grandes dimensões na região e os adversários aos americanos são a Síria e o Irã. Os EUA tentará os enfraquecer o quanto puder. E é possível que, nesse sentido, o governo do Líbano funciona como uma estrutura muito afinada com os interesses americanos.

Folha Online - Os Estados Unidos acusam a Síria e o Irã de terem um plano para desestabilizar o Líbano. Qual a sua visão sobre a atuação destes países?

Nasser -
Bom, em uma pergunta sobre "desestabilização", primeiro precisamos saber se o Líbano é estável agora. O Líbano é um país que tem um equilíbrio político e sectário precário. É um país complexo, há muitas divergências de poder, e por isso há hoje essa disputa entre governo e oposição.

O Líbano é um ator regional estratégico, e, internacionalmente, quem puder controlá-lo ganha boa parte da briga. Tanto a síria e o Irã tem seus interesses no Líbano. [O presidente dos EUA, George W.] Bush também já escolheu seu lado dentro da política libanesa. Ele já afirmou que vai proteger o governo [do primeiro-ministro Fouad Siniora], qualquer que seja o valor da afirmação.

O enfraquecimento do Hizbollah é um dos objetivos centrais das políticas americana e israelense nos últimos tempos. O primeiro passo dentro do jogo de poder dos EUA e de Israel na política da região era fazer com que a Síria saísse do Líbano. O assassinato do [ex-primeiro-ministro Rafik] Al Hariri criou as condições políticas para isso.

O segundo passo, que está na resolução 1559 do Conselho de Segurança (CS) da ONU, que também exigia que todas as forças externas saíssem do Líbano (ou seja, os sírios), é fazer com que as milícias internas se desarmassem (ou seja, o Hizbollah). Ora, como o Hizbollah não foi desarmado ainda, esse desarmamento deverá ser feito por outras vias, e a guerra de julho último serviu também a esse objetivo.

Claro, o enfraquecimento do Hizbollah enfraquece por tabela o Irã e a Síria. E é natural que seus parceiros na região não concordem com isso.

Folha Online - O sr. acha que Israel poderia voltar a enfrentar o país caso o Hizbollah tente chegar ao poder?

Nasser -
Hoje circula nas ruas o temor de que Israel já esteja preparando mais um ataque ao Líbano. E há discussões na própria política israelense sobre o tema. Ninguém considera que seja impossível outro ataque, sobretudo porque eles continuam sobrevoando o território libanês, e a situação está tensa no Líbano.

Não sei se o Hizbollah chegaria ao poder no sentido que damos a esta expressão --de controlar o governo. Não acho que isso esteja no programa do grupo, porque eles sabem que não há condições políticas para isso.

Agora, não há dúvida de que sempre há a possibilidade que Israel decida que chegou a hora de dar um "golpe final" contra o Hizbollah. E isso precisa ser lido contra esse pano de fundo, de que existem interesses de Israel, dos EUA e de outros países para o que, na visão deles, deveria acontecer no Líbano.

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