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14/11/2001 - 04h52

Especialistas temem massacres de pashtus

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JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Deixar que a Aliança do Norte controle Cabul e o resto do Afeganistão é abrir caminho para o genocídio contra os pashtus, etnia majoritária à qual pertence o rei deposto Zahir Shah e sobretudo os integrantes do Taleban. É o que dizem especialistas na região ouvidos pela Folha.

Há precedentes de carnificinas entre grupos étnicos afegãos. O mais recente é o de 1994.

Na disputa pelo controle de Cabul morreram perto de 50 mil pessoas. Enfrentaram-se uzbeques, pashtus apoiados pelo Paquistão, hazaras apoiados pelo Irã e o líder militar tadjique Ahmad Massoud.

Os pashtus não são só afegãos. Eles formam parte da classe dirigente no Paquistão. O que explica a advertência que Islamabad já lançou contra qualquer solução que dê o controle daquele país a um outro grupo étnico.

O frade dominicano francês Serge de Beaurecueil, 84, disse à Folha que barreiras tribais levariam um governo da Aliança do Norte à guerra civil. Ele morou 20 anos no Afeganistão e escreveu sobre o país três livros.

Outra especialista, Firouseh Nahavandi, 46, nascida no Irã e residente há duas décadas na Bélgica, autora de quatro livros sobre a Ásia Central e professora da Universidade Livre de Bruxelas, diz que o Taleban tende agora a minguar. Há chefes regionais da etnia pashtu que aderiram à milícia para com ela dividir o poder. "É um jogo no qual entram vantagens materiais, como investimentos em infra-estrutura que beneficiem um chefe tribal e o credenciem para se sobrepor a um chefe tribal concorrente", diz ela.

Frei Beaurecueil dá o exemplo concreto de um pashtu do orfanato para crianças muçulmanas que criou em Cabul. "Ele se tornou oficial comunista; foi para o norte, sob ordens de um comandante uzbeque, que o cooptou. Quando o Taleban ocupou Mazar-e-Sharif, ele se tornou oficial da milícia. Talvez esteja agora em busca de novos rumos."

Em verdade, os próprios pashtus não são homogêneos. Firouseh Nahavandi lembra que eles se subdividem em duas grandes federações tribais.

De um lado, os ghizai, que nunca foram a aristocracia e aos quais pertenceram os chefes comunistas nos anos 80. O núcleo duro do Taleban é igualmente da federação ghizai.

Em oposição a eles há os abdali, também chamados de durrani, por causa de Ahmad Durrani, o primeiro rei afegão, no século 18. Antes da invasão russa, em 1979, e só por um período de poucos meses, em 1929, o Afeganistão não foi governado por pashtus.

Há pashtus na Aliança do Norte, como foi o caso do comandante Abdul Haq, assassinado em Cabul há menos de um mês ao tentar virar a casaca de dirigentes do Taleban. Mas a etnia é minoritária na coalizão que agora tomou a capital do país.

Concentração
Beaurecueil complementa com outra informação. Os pashtus estão sobretudo no sul e no leste. Mas há cerca de um século o rei Abdur Rahman deportou durrani para o norte por resistirem à sua autoridade. Esses pashtus tiraram terras e poder de outras etnias, aliando-se aos pashtus de Cabul para continuar com o comando étnico-político.

Nahavandi nota que a resistência aos soviéticos, nos anos 80, deu legitimidade a outras etnias, como os uzbeques, os tadjiques ou os hazaras. Mas nem por isso, afirma Beaurecueil, os pashtus aceitariam ser governados por supostas "raças subalternas".

As diferenças são culturais e linguísticas, com raízes históricas antigas. O frade dominicano lembra que, a rigor, o Afeganistão não era um país até o século 19. Era ponto de passagem na rota entre Bagdá ou o Irã até a Índia.

Seus habitantes se autodenominavam pashtus ou afegãos (sinônimos perfeitos), palavra derivada do nome de um ancestral mítico, Avrana, um oficial do exército do rei Salomão. Os pashtus eram nômades, organizavam-se em clãs e federações. Tinham como "capital" (em verdade, um ponto de referência tribal) a cidade de Candahar.

As fronteiras dos Estados modernos cortou ao meio regiões etnicamente homogêneas. Os turcomenos têm muito mais a ver com o Turcomenistão do que com os afegãos que os governam. Antes que os pashtus, com a ajuda dos ingleses, se equipassem ao fim do século 19 com uma estrutura burocrática para a dominação das demais etnias, elas viviam soltas e disputando áreas férteis ou fazendo alianças para guerrear contra etnias terceiras. Possuíam em comum a fé muçulmana.

"Código tribal"
Os próprios códigos culturais não eram os mesmos. Os pashtus, por exemplo, diz frei Beaurecueil, "não vivem exatamente segundo a sharia muçulmana; têm um código tribal para uso próprio, baseado na honra, na hospitalidade e na vingança".

Muito daquilo que o Taleban toma como característica religiosa -o confinamento da mulher, a proibição da música e de outras formas de entretenimento- constitui, em verdade, exemplos da lei cultural pashtu.

A ilusão de um Afeganistão com etnias convivendo harmonicamente se manteria entre o final da monarquia, nos anos 70, à ocupação soviética.
Mas ela se evaporou quando, em nome do islã, cada grupo assumiu sua identidade ao integrar milícias diferentes contra o inimigo estrangeiro.
Essa reestruturação das etnias com forte apelo militar desembocou, em 1992, na guerra civil provocada pelo colapso do governo apoiado pelos russos.

Mesmo não tomando o sentimento nacionalista como um cidadão ocidental -um nuristani mantém sua identidade, e só num segundo momento se diz afegão-, há no Afeganistão um forte sentimento contra a ingerência estrangeira.

Beaurecueil diz que se isso valeu para os russos, também valeu para os árabes, com relação aos árabes, tidos como estrangeiros muitas vezes hostis. Bin Laden é árabe. Sua presença no Afeganistão estava longe de despertar aprovação unânime.


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