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02/12/2001 - 05h32

"Ilha dos Mortos" exala o cheiro do 11 de setembro

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SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo, em Nova York

Quanto mais distante fica 11 de setembro, menos importantes para as identificações vão se tornando os escombros do World Trade Center, em Manhattan. Por ordem do prefeito Rudolph Giuliani, o local do ataque terrorista, que já foi chamado de "a maior cena de crime do mundo", viu o pessoal de resgate sair para dar lugar ao maquinário pesado de remoção de entulho.

Aos poucos, o foco muda para outro sítio, mais ao sul, na verdade numa outra ilha, a meio caminho entre a cidade e a boca do oceano Atlântico.
Trata-se do ex-depósito de lixo de Fresh Kills, em Staten Island, uma das cinco regiões administrativas de Nova York, para onde está sendo levado tudo que é retirado das ruínas.

Em inglês, "Fresh Kills" quer dizer "presas frescas", mas não vem daí a origem do nome do ex-esgoto aberto. Na verdade, as palavras são holandesas e significam "rio de água doce". Desde 11 de setembro, no entanto, o pessoal que trabalha aqui chama o lugar de "Ilha dos Mortos".

Pedaços de corpos
"Outro dia achei um dedo indicador no meio de pedaços de concreto", disse à Folha o policial aposentado Joseph Pirrello, 68, que mora em Staten Island e trabalha nas buscas há dois meses. Não ficou chocado? "Chocado? Nem sei mais o que pensar."

Esse é seu papel. Procurar por pedaços de corpos, qualquer pedaço, que será enviado para um médico-legista, que tentará identificá-lo por sinais evidentes (uma tatuagem, uma cicatriz, um anel) ou por DNA. Do ataque até agora, Nova York já expediu 2.283 atestados de óbito, dos quais menos de mil baseados em corpos achados. Segundo a prefeitura, há 3.682 vítimas. É a diferença entre os dois números que Pirrello e seus colegas tentam achar no lixo.

Ele acorda todos os dias cedo, vai a pé até o depósito e antes das 9h já está vestido de macacão impermeável branco, luvas de borracha, máscara antiodor, protetor de vista e capacete, cavoucando o que os caminhões acabaram de despejar. Não é fácil.

A cada vez que quer ir ao banheiro, por exemplo, o ex-detetive tem de passar por uma tenda de descontaminação, despir-se de todo o aparato, que será jogado fora (à exceção do capacete), lavar as mãos e o rosto com um desinfetante forte e ser inspecionado por um médico que checará se ele tem cortes. O mesmo ocorre no almoço e antes de ir embora.

A visão do lugar já era impressionante antes mesmo do ataque terrorista, com seus urubus sobrevoando e o gás metano que escapa do solo. Fresh Kills foi o principal depósito de lixo de Nova York por 53 anos. Tem três vezes o tamanho do Central Park e funcionou até março deste ano, quando, depois de décadas de protesto, a população local conseguiu sensibilizar a prefeitura.

Um dia, a região vai virar um parque. Pelo menos é o projeto original, de antes da queda do World Trade Center. Depois, todo aquele terreno já preparado pareceu irresistível para o prefeito Rudolph Giuliani, que autorizou que o que fosse retirado das ruínas fosse levado para lá. O conteúdo chega em barcas municipais que descem o rio Hudson.

A busca não é só de restos humanos. Disquetes amassados, fotografias rasgadas, pedaços de cartões de crédito e até micropartes de roupas são recolhidos. Uma tíbia, como a que Pirrello lembra ter achado outro dia. Qualquer coisa que prove que tal ou qual pessoa estava lá no exato momento da queda das torres.

Tudo vai ser usado depois como evidência num tribunal, para provar que alguém realmente morreu -e, consequentemente, que sua família tem direito ao atestado de óbito, ao seguro de vida, à indenização. É a única maneira para muitos parentes, já que, devido à natureza do ocorrido, muitos corpos viraram cinza ou foram totalmente destruídos.

"Se grande parte do concreto virou pó, calcule o que aconteceu com as
pessoas", diz Pirrello. Segundo James Luongo, policial responsável por Fresh Kills, a busca serve menos para achar alguma evidência que vá fazer diferença nas investigações do que para mostrar às famílias que os restos de seus entes queridos não estão sendo simplesmente jogados num buraco, junto do lixo.

"É preciso demonstrar que há um processo lógico, um protocolo", disse Luongo. Todo o processo é inédito por suas proporções, tanto na história da polícia quanto na do equivalente local do Instituto Médico Legal.
Afinal, são 1,2 milhão de toneladas de entulho, das quais apenas um terço já foi retirado de Manhattan.

Esteiras rolantes
Até agora, os 800 homens que trabalham lá em turnos de 12 horas por dia, sete dias por semana, já acharam 2.000 pedaços de corpos e cerca de 1.500 objetos pessoais. Eles trabalham com esteiras rolantes, peneiras automáticas e separadores de objetos parecidos com os usados em mineração.

Para estimulá-los, há cartazes com o nome das pessoas que já foram identificadas graças aos esforços da equipe da Ilha dos Mortos. E há também os "escavadores especiais", como se referem os policiais que trabalham lá.

São agentes do FBI e do serviço secreto que se concentram num monte distinto de entulho, de acesso proibido ao restante da equipe. São os escombros do prédio do World Trade Center onde funcionava um andar inteiro do serviço de inteligência da CIA, até então escondido sob a fachada de um outro órgão federal.

Os outros, abertos a todos, carregam cartazes como "ossos de animais" (sim, cachorros, gatos e aves também morreram naquele dia), "sapatos" (há milhares deles, um dos artigos que sofreram menos com a destruição, segundo os policiais) e "objetos pessoais", como uma caixa de convites de casamento fechada, uma peruca de cabelos negros ou uma escova de dentes rosa.

"Mas o pior de tudo é mesmo o cheiro", disse um dos policiais, Tony Rivera. É só fazer os cálculos: são mais de cinco décadas de lixo que foram misturadas a entulho que traz restos humanos de já quase três meses de idade. "Isso entra pelo nariz e gruda na garganta para sempre."



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