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09/06/2002 - 03h49

Assembléia inaugura reconstrução afegã

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IGOR GIELOW
Coordenador da Agência Folha

Sete meses após a rendição do Taleban, o Afeganistão começa tudo de novo amanhã. Com a reunião da Loya Jirga, "grande conselho" na língua pashtu, o país tenta equacionar os conflitos de poder surgidos após a derrota da milícia fundamentalista islâmica que o governou por seis anos.

Mais que isso, o Afeganistão tenta ter um governo de verdade após 29 anos de golpes, invasões e guerras. A data é arbitrária, contada a partir do golpe que derrubou o ex-rei Mohammed Zahir Shah do poder - o mesmo que, agora com 87 anos, vai liderar a assembléia que começa amanhã na capital, Cabul.

"A comunidade internacional espera um governo mais representativo. O papel do rei deverá ser apenas simbólico, de união nacional", disse à Agência Folha Roland Dannreuther, diretor do Departamento de Política da Universidade de Edimburgo (Escócia), especialista em Ásia Central.

A Loya Jirga é uma enorme assembléia, com 1.501 delegados, que se reunirá para definir em sete dias de debates quem vai governar o país nos próximos 18 meses. Nesse período, uma Constituição terá de ser escrita e, após sua promulgação, eleições deverão ser realizadas.

No papel, tudo foi acertado às margens do rio Reno, em Bonn. O acordo que leva o nome da ex-capital da Alemanha foi assinado nessa cidade pelos principais líderes de facções afegãs no dia 5 de dezembro, véspera da rendição do Taleban.

O regime liderado pelo mulá Mohammed Omar foi derrubado após os ataques terroristas a Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001. Estava instalado no Afeganistão desde 1996, com a bênção dos EUA —afinal de contas, trouxe estabilidade ao país após conflitos sucessivos, da invasão soviética (1979-89) à guerra civil (1992-94).

Mas, como abrigava o suspeito número um dos atentados, o saudita Osama bin Laden, o Taleban foi pressionado a entregá-lo. Não o fez e acabou derrotado após os bombardeios anglo-americanos e o apoio ocidental a seus rivais da Aliança do Norte.

Karzai
No ambiente pós-Bonn, foi instalado no poder Hamid Karzai, com o apoio dos EUA. "Homem mais elegante do mundo", segundo gurus da moda, Karzai é um líder pashtu, principal etnia afegã.

Só que o governo interino, que tomou posse em 22 de dezembro, é dominado pela Aliança do Norte, que agrega em seu comando as minorias tadjique e uzbeque. Em especial a primeira, que domina os três principais ministérios do governo (Defesa, Interior e Relações Exteriores).

Com isso, surgiram críticas de todos os lados e um novo inimigo declarado, o "senhor da guerra" Gulbuddin Hekmatiar. Líder pashtu com fortes ligações no Irã durante a guerra contra a ocupação soviética, o ex-premiê Hekmatiar se exilou em Teerã fugido do Taleban.

Ele é suspeito de ter planejado um golpe de Estado em abril, quando também houve o principal incidente do governo Karzai: o atentado contra a comitiva do ministro Mohammad Fahim (Defesa) em Jalalabad, que acabou com quatro mortos.

Desde então, Hekmatiar vem sendo caçado. Segundo algumas versões, ele teria sido atacado, no oeste afegão, por um avião sem piloto dos EUA.

Al Qaeda
Além disso, outra dor de cabeça, os remanescentes do Taleban e da Al Qaeda, rede liderada por Bin Laden, estão se reagrupando.

Dos seus 50 mil homens antes da campanha aérea dos EUA, entre outubro e dezembro passados, cerca de mil foram presos. Entre 5.000 e 10 mil foram mortos, segundo levantamentos extra-oficiais de ONGs de Cabul, que colocam o número de vítimas civis entre 1.000 e 2.000 pessoas.

Semanalmente, os combatentes que sobraram protagonizam algum incidente envolvendo os cerca de 12 mil soldados estrangeiros em solo afegão —50% americanos. Até agora, 48 combatentes dos EUA morreram na operação (incluindo aí pessoal em navios e aviões fora do Afeganistão), a maioria deles em acidentes. Há cerca de 20 vítimas entre outros aliados.

Salvo contratempos, Hamid Karzai, 44, natural de Candahar, deverá sair da Loya Jirga como entrou: presidente interino. Isso porque, no dia 1º, ele recebeu o apoio dos ministros tadjiques e dos dois principais "senhores da guerra" afegãos, o uzbeque Abdul Rashid Dostum e Ismail Khan, tadjique que governa a Província de Herat com mão-de-ferro.

"O desafio será montar uma estrutura de governo para o país. Não sabemos se ele conseguirá", afirmou o analista paquistanês Zia Aziz, especialista na área.

Para tal montagem, o governo está passando o chapéu. Espera receber US$ 5 bilhões em cinco anos, quase US$ 2 bilhões já em 2002.

Mais de 60 países e ONGs já prometeram a ajuda, mas, por enquanto, o auxílio é compartimentado. Para sua força policial de 70 mil homens, por exemplo, está recebendo ajuda da Alemanha. Seu Exército de 80 mil homens, se tudo der certo, terá treinamento americano e armas russas.

Há esperanças de que a injeção de capital revitalize a economia e recrie o sistema bancário.

Até a idéia de construção de um gasoduto de US$ 2 bilhões entre as ricas reservas do Turcomenistão e o porto de Karachi, no Paquistão, voltou às discussões.

A obra sempre esteve no centro de teorias de conspiração sobre a ascensão do Taleban e os motivos da ação regional dos EUA —que teriam interesses porque buscam alternativas energéticas ao conturbado Oriente Médio.

"É exagero. Nenhuma grande empresa se interessou até agora, e a situação de segurança é instável", afirma Dannreuther.

Dívida social
Até agora, Karzai só conseguiu "segurar as pontas", ensaiando uma abertura a investimentos externos enquanto lidava com alguma facção hostil.

Isso sem falar na dívida social afegã, país com mortalidade infantil quatro vezes superior à do Brasil, que passou os seis anos da era Taleban sem o acesso universal à saúde e ao ensino. São quase 5 milhões de refugiados (de uma população de cerca de 27 milhões) em países vizinhos, fora milhões abaixo da linha da pobreza dentro de suas fronteiras.

Se ficar no poder, Hamid Karzai terá de contar com o Ocidente para sua missão reconstrutora e a manutenção da paz. Ao que tudo indica, não será simples.
 

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