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21/03/2003 - 07h02

Artigo: De volta à Idade Média

NICOLAU SEVCENKO
Especial para a Folha de S.Paulo

Em meio ao oceano de cartazes na marcha de um milhão por Londres (número oficial; extra-oficial: dois milhões), uma das placas dizia: "Bush quer bombardear a lei"; outra anunciava: "Os EUA estão criando as Nações Desunidas"; outra clamava: "Salvem a Terra, mandem Blair e Bush a uma missão em Netuno".

Afora os slogans pacifistas que a ocasião exigia, a passeata pululava de mensagens alertando que, para além dos horrores da guerra, pairam as ameaças de uma ruptura irreversível das instituições multilaterais. Depois da desregulamentação dos mercados e das garantias da legislação social, estaríamos assistindo agora à desestruturação da ordem internacional. Soem os alarmes!

De fato há muito mais em jogo do que se encontra circunscrito pelas fronteiras do Iraque. Livro recente do historiador Michael Howard, ex-professor de Oxford e Yale e um dos fundadores do International Institute for Strategic Studies, ajuda a refletir sobre a questão. O título é esclarecedor, "The Invention of Peace and the Reinvention of War" (Profile Books, 2002). Parte de conclusão surpreendente de Sir Henry Maine, em seu clássico sobre direito internacional (1888), de que "a guerra parece ser tão antiga quanto a humanidade, mas a paz é uma invenção moderna".

Nos tempos antigos e medievais, para governantes e elites de orientação belicosa, os breves períodos de paz é que pareciam anomalia. A guerra lhes era tão natural quanto as tempestades, predatórias, mas também inevitáveis. Só com os filósofos iluministas surgiria a idéia de que os confrontos militares são catástrofes provocadas pela cobiça dos poderosos. A gestão racional das sociedades deveria portanto restringir as causas, o impacto e o efeito das guerras. A idéia seria criar tribunais internacionais autônomos para a resolução dos conflitos, dotados de mecanismos de consenso e estabilização.

Foi Kant quem concebeu a idéia de uma Liga das Nações. A longo prazo, o objetivo era erradicar a guerra, como uma obsolescência típica de tempos primitivos.

Se nesse sentido a paz foi deveras uma invenção moderna, sua implementação porém levou mais tempo. Os acordos de Versalhes, após a Revolução e as guerras napoleônicas, criaram um sistema informal de consultas entre governos que pacificou a Europa por um século até a Grande Guerra. O fim do conflito em 1918 assinalou o declínio europeu e a ascensão dos EUA como potência mundial. O país foi o primeiro a ter constituição e aparato institucional inspirados nos preceitos iluministas. Não surpreende que tenha encabeçado a criação da liga após a Primeira Guerra e a Organização das Nações Unidas após a segunda. Malgrado seus defeitos, não há como negar que a ONU funcionou como câmara de descompressão de tensões internacionais na turbulenta segunda metade do século 20.

Por mais insatisfeitos que estivéssemos com os limites da ONU, agora, vislumbrando a possibilidade do seu declínio, sentimos como é apavorante encarar um mundo sem instância com autoridade para gerar mediação, consenso e concórdia. O que aponta parece ser a reinvenção da guerra como componente intrínseco de uma nova ordem, em que uma cultura bélica recoberta de simbolismos religiosos e preconceitos inconfessáveis se sobrepõe à herança do iluminismo. De volta à Idade Média, prenunciada pela volta da caça às bruxas.

Esse retrocesso cultural ou essa manobra reacionária, como quer que se a conceba, tem fonte clara. Dentre os vários "thinking tanks" que vicejaram nos meios conservadores, empenhados no impeachment de Bill Clinton, ganhou destaque o núcleo duro chamado Project for the New American Century.

Sediado em Washington, reunia conselheiros políticos que se destacaram no círculo áulico da administração Bush sênior. Gente como Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Jeb Bush, Richard Perle, Paul Wolfowitz, que viriam a se tornar, como se sabe, homens-chaves do governo Bush junior. Um dos membros era Zalmad Khalilzad, articulador das lideranças iraquianas no exílio e um dos principais candidatos ao suposto governo de transição no Iraque libertado.

O objetivo básico dessa corrente é a construção do que chamam de "dominação de espectro pleno". Ou seja, a idéia de que no século 21 os EUA se tornem militarmente invencíveis. Daí a iniciativa de levar adiante o projeto "Guerra nas Estrelas" e o empenho em desenvolver uma nova geração de armas nucleares, com tecnologia de exclusivo domínio americano. Levado às últimas consequências, esse projeto deixaria os EUA na posição de ditar a política mundial pela convicção da superioridade inquestionável de seu destino manifesto e pelo seu ilimitado poder de coerção.

Para parte significativa dos americanos e para a população mundial, esse projeto revela os riscos impensáveis do unilateralismo e a necessidade de se reajustar os desequilíbrios de poder atualmente vigentes na ONU e no Conselho de Segurança.

O que essa crise revela é tão medonho, que faz soar o alarme. Em tempos sombrios como estes, as maiorias que amam a vida, a liberdade e a paz entendem e atendem ao apelo das luzes.

Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP

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