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01/04/2003 - 07h05

Artigo: A fúria de um mundo agonizante

JURANDIR FREIRE COSTA
Especial para a Folha de S.Paulo

No Iraque, dois países opulentos esmagam uma multidão maltrapilha; no Brasil, em especial no Rio, cidadãos pacatos, indigentes armados, policiais e, agora, até juízes são mortos como insetos. O que explica tudo isso?

À primeira vista, a resposta pode parecer óbvia. Por trás da guerra a Saddam Hussein, diz-se, estão os interesses das companhias de petróleo anglo-americanas, a ordem financeira internacional e a estratégia de dominação geopolítica do governo republicano dos EUA; por trás da carnificina urbana, a concentração de renda da oligarquia brasileira, o dinheiro dos chefões da droga e a corrupção de altos escalões da administração pública.

A interrogação, porém, vai além disso. Sabemos que o poder não tem escrúpulos e que a disposição para matar está potencialmente inscrita em todos nós. A questão, contudo, não são as mortes violentas, mas os motivos pelos quais se mata.

O crime contra a vida, até recentemente, buscava se apoiar em razões compatíveis com nossos credos morais básicos. As guerras entre Estados ou grupos étnico-religiosos, para se legitimarem moralmente, invocavam a defesa de valores elevados _"Deus", "raça superior", "libertação do proletariado", "civilização", "progresso" etc. Do mesmo modo, os crimes comuns procuravam se apresentar como justo revide a ofensas físico-morais.

A cultura do respeito à vida exigia que a impiedade se ocultasse na sombra da virtude. A infração assassina se estruturava de tal maneira que o nexo entre a causa e o crime se tornava inteligível à luz dos princípios éticos dominantes.
Outra coisa são os crimes sem razão ou por razões morais irrelevantes. Nesses casos, o abismo entre a causa e o crime é tão profundo que não temos como entender, do ponto de vista moral ou emocional, o que aconteceu.

Nos dias atuais, é justamente isso que horroriza. As razões pelas quais se mata são tão irrisórias ou mentirosas que, frequentemente, somos levados a pensar que só há duas saídas: ou damos as costas ao que vemos ou desejamos que a lei do talião venha massacrar a baixeza, o cinismo e a brutalidade dos matadores. Em outras palavras, estamos prestes a jogar para o alto séculos de cultura humanitária, em favor de um mundo cuja escala moral é a sarjeta.

Na guerra contra o Iraque, isso fica visível. A ferocidade dos agressores se torna ainda mais absurda, dada a estupidez da justificação.

Como líderes políticos das duas nações que, ao lado da França, criaram a moderna democracia ocidental foram capazes de alegar razões morais para propósitos belicosos ilegais, sabendo que se dirigiam a uma opinião pública alfabetizada e com memória?

Na delinquência urbana, de forma análoga, para matar não são necessários maiores pretextos. Se a arma está engatilhada e o ímpeto diz sim, ai de quem está à mão! Mata-se a avó por dinheiro para comprar cocaína; uma adolescente de 14 anos morre, porque alguém quis roubar qualquer coisa no metrô e enfrentou o tiroteio da polícia; mata-se um professor universitário porque não deveria estar ali, na hora do assalto; matam-se policiais porque são "policiais", e bandidos porque são "bandidos".

Enfim, mata-se, mata-se e mata-se. E o mais duro é que, se perguntarmos qual a verdadeira razão de tantas mortes, a resposta vem nua e crua: mata-se para manter vivo um estilo vida nefasto e em vias de extinção. As matanças em massa que assistimos exprimem a fúria de um mundo agonizante. Essa monstruosidade social definha e, nos últimos estertores, devora corpos e esperanças, em uma espécie de canibalismo genocida que parece saído das histórias de ficção científica.

O que chamamos de "sociedade de consumo", como mostra Campbell, nasceu da aliança entre a revolução industrial e a revolução moral protestante. O hábito de adquirir objetos para fins de ostentação social não é, por si, incompatível com o apreço por deveres morais. Pelo contrário, o consumismo, nas origens, esteve associado a ideais de liberdade individual, de valorização da intimidade, de reencantamento do convívio familiar pelo aconchego material dos lares etc.

A amoralidade ou imoralidade do consumismo atual não se deve ao hábito de comprar bens com obsolescência programada. Deve-se à desvinculação desse hábito de qualquer pretensão ao aperfeiçoamento ético.

Isso começou a ocorrer quando os corpos e os sentimentos passaram a ser as novas "mercadorias" de manipulação comercial e publicitária. A partir daí, o próprio estofo da moralidade, a realidade físico-emocional humana teve seu valor ético degradado, e a compra de objetos supérfluos se transformou em uma compulsão cega, alheia a seu objetivo inicial, a felicidade emocional privada.

Desde então, falamos de um "consumo" de bens materiais ou símbolos de status, sem perceber que o que está sendo verdadeiramente "consumido" é a vitalidade de nossos corpos e mentes, diariamente vendida e comprada, usada e abusada para azeitar a máquina ensandecida do lucro.

Observadas de perto, as promessas da "sociedade de consumo" são espantosas. Tudo cabe numa lista tacanha, onde, de um lado, estão os meios de evasão _a cocaína, o ecstasy ou o mais novo psicotrópico contra o mais novo sofrimento existencial_ e, de outro, a realidade social da qual todos querem se evadir _o tédio; a aridez da inveja e da competição; o medo do desemprego; o tormento das decepções românticas; a obsessão pela magreza e pela boa-forma; a anorexia; a bulimia; as mutilações corporais; as pancadarias adolescentes dos fins de semana; a depressão; a insônia crônica; o estigma da obesidade; o receio da solidão; o exame fóbico das taxas de colesterol, enfim, o pavor do câncer, do infarto, da doença de Alzheimer, da "feiúra" da velhice etc.

O braço armado da "sociedade de consumo", com ou sem dragonas, mata e morre por isso. Ninguém está bombardeando o Iraque para defender a paz de espírito e o conforto emocional dos americanos, assim como nenhuma gangue carioca ou paulista mata pelo direito de amar, de ser solidário ou de viver em harmonia e dignidade junto aos seus.

Nos sujos subúrbios cariocas e paulistas ou no ronrom feltrado dos bairros chiques do dito "Primeiro Mundo", a aspiração cultural é a mesma: explorar o corpo e a alma, até o embotamento ou a exaustão, para que a insensatez da vida que se leva não pareça tão real quanto é.

Philip Rieff, há quase 40 anos, pensava que o declínio da cultura trágica iria, finalmente, permitir o surgimento de uma moral das satisfações humanas, diversa do "controle consolatório" oferecido pelas morais tradicionais. Errou na previsão. A moral do "bem-estar consumista" nem nos trouxe alento nem consolação. Antes, vivíamos para a felicidade que, raramente, chegávamos a ter; hoje, matamos para continuar tendo a infelicidade que já temos.

A sociedade ocidental _o Brasil, em particular_ necessita, urgentemente, de um "fome zero cultural". Mudar não basta. É preciso não agir como bestas a caminho do abatedouro. É preciso entender que o "consumismo" do qual tanto falamos não mais existe, e o que existe está com os dias contados. Os "Iraques", os "Rios" e os "11 de setembro" são o grasnar desse abutre moribundo.

E, se os mais justos e decentes não tratarem de enterrá-lo logo, mais sangue e mais cadáveres vão estar presentes no cortejo de seu inevitável funeral.

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 503 d.C.".

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