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01/04/2003 - 06h00

Sérgio Dávila: Saída sem pontes, soldados nervosos

SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo
No caminho entre Bagdá e Amã

O motorista que contratamos quer US$ 2.000 pela viagem, ou dez vezes mais do que nos cobraram na vinda. Ele se chama Nissim, fala inglês e diz que é preciso ser louco para fazer o percurso de carro de volta, de Bagdá à cidade de Tribil, na fronteira com a Jordânia. Nissim tem certa razão.

É pelo menos dez vezes mais perigoso sair da capital iraquiana agora, sob guerra, mesmo que o destino seja o oeste do país, menos disputado pela coalizão anglo-americana, que se concentra nas regiões norte e sul.

Entre os perigos reais e imediatos enfrentados no caminho de pouco menos de 600 km, estão o assalto por bandos de milícias nômades, armadas recentemente por Saddam Hussein, que já rondavam a rodovia de Tribil antes, mas sem a mesma desenvoltura.

Por outro lado, há a possibilidade de bombardeio de pontos estratégicos ao longo da e na própria rodovia pela coalizão anglo-americana, que olha com muito cuidado o acesso iraquiano à vizinha Jordânia, o principal parceiro comercial do país embargado.

Nos últimos dias, foram atingidas fábricas nas cidades de Al Ramadi e Al Fallujah, ambas marginais à estrada, suspeitas de produzirem elementos utilizados na confecção de armas químicas e de mísseis e de abrigarem soldados da Saddam Fedayin, a divisão de mártires do regime iraquiano.

Além disso, há poucos dias um ônibus levando turistas sírios por esta mesma estrada nesta mesma direção havia sido confundido com um destacamento inimigo e atacado por marines americanos e atingido por um míssil. Cinco morreram e dez ficaram feridos.

Rodovia tomada

Contratado o motorista, marcamos a saída para as 5h de ontem. Na partida, Nissim diz que pensou bem e não vai nem mesmo pelo preço combinado. No lugar, vai mandar seu primo, que não fala uma palavra em inglês e é um religioso radical _passará a viagem inteira lendo o Alcorão, o livro sagrado islâmico, e ouvindo fitas cassete com radicais muçulmanos exaltando as maravilhas da jihad (a guerra santa).

Não será a única surpresa: Nissim havia ouvido numa rádio estrangeira que no km 250 havia um posto tomado pelo Exército dos EUA. Os soldados estavam especialmente nervosos devido aos ataques suicidas sofridos pela coalizão no fim de semana e aos elogios que os perpetradores haviam recebido tanto de Saddam quanto do vice-presidente, Taha Yassin Ramadan, e do porta-voz do Exército, Hazi al-Rawi. A ordem, dizia Nissim, era atirar primeiro e perguntar depois.

Marcamos o carro, uma caminhonete GMC branca, com fitas adesivas pretas formando a palavra "TV" (o iraquiano médio não reconhece a palavra "press") e partimos, sempre de coletes à prova de balas.

Entre o hotel e o começo da estrada, pelo menos mais três bombas caíram nas proximidades _os ataques com as "treme-terra" continuaram pela manhã inteira e acabariam de derrubar, ficamos sabendo depois, o já combalido Ministério da Informação.

Nos primeiros quilômetros, um cenário bem diferente do da vinda. Soldados iraquianos aparecem em barricadas e trincheiras improvisadas em cada ponto possível do relevo. Mais adiante, jipes com metralhadoras viradas para a Jordânia e caminhões lança-foguetes esperam o invasor.

Viaduto bombardeado

Não há mais mão e contramão de tráfico, pois somos praticamente o único carro na estrada nas duas vias. Quanto mais nos afastamos de Bagdá, mais esparsos vão ficando os soldados e as barreiras. Passados 150 km, não há mais viva alma ao redor.

É a GMC e o deserto, e eventualmente uma pomba sendo atropelada ou esmagada por nosso motorista, que continua com o "gospel" islâmico nas caixas de som e ri a cada ave atingida.

Então, o primeiro vestígio da guerra propriamente dita. A quase 200 km de Bagdá, passamos com cuidado debaixo de um viaduto que havia sido bombardeado pela coalizão nos últimos dias, interrompendo o que poderia ser uma ligação alternativa para os iraquianos do norte com o sul.

É quando aparece a visão que deve estar causando medo e alívio em partes iguais da população iraquiana nos últimos dias. Surgindo do meio da areia como se fosse uma miragem, um destacamento de marines norte-americanos interrompia a estrada.

Vestidos de uniforme para camuflagem no deserto, os cerca de 50 soldados empunhando fuzis M-16 faziam uma barreira em ambos os sentidos da rodovia, apoiados por pelo menos cinco carros tanques, um deles pilotado por um soldado de óculos escuros que mirava nosso carro.

A caminhonete é cercada e um soldado falando árabe fluente nos manda descer. Esclarecido quem somos e o que estamos fazendo, eles começam a nos bombardear com perguntas em inglês. Como está Bagdá? Como o povo está reagindo aos ataques? Onde é o posto iraquiano mais próximo?

Todos têm aparência cansada, estão com a pele vermelha do sol quente e os cabelos duros de areia. Somos liberados sem maiores detalhes: "No names, no questions, no photos", dizem.

No resto do caminho, veríamos os sinais da batalha que aquele destacamento travou ao tomar a rodovia. Ao longo da margem, caminhões e tanques iraquianos destruídos e jipes queimados, um deles ainda com as roupas dos soldados que o ocupavam.

O ônibus atingido

Poucos quilômetros à frente, o caminho seria ainda interrompido uma última vez. A ponte que ligava os extremos da rodovia acabara de ser bombardeada de novo. Agora, entre dois buracos feitos pelos mísseis, sobrava uma fina faixa de asfalto que mostrava a estrutura de ferro e um pedaço de terra ao longe, embaixo.

O motorista pára, pensa um pouco e arrisca. Passamos entre os dois buracos com os pneus do carro querendo escorregar para os vãos. Do nosso lado esquerdo, jazia um ônibus completamente carbonizado. Era ele, reconhecemos. Pela localização e pela descrição, era o ônibus dos turistas sírios, atingidos dias antes.

Na fronteira, uma tensão final. Um dos dez escritórios pelo qual temos de passar para sair nos informa que falta um carimbo em nosso passaporte. "Vocês vão ter de voltar a Bagdá para pegá-lo", diz o funcionário. Uma hora e quinze minutos de longas negociações depois, deixávamos o Iraque e as três últimas imagens de Saddam Hussein para trás.

Eu ainda seria interrogado por mais de uma hora pelo serviço de inteligência jordaniano, no outro lado da fronteira, que perguntaria do número de bombas que ouvi durante minha estada em Bagdá ao número de exemplares que a Folha de S.Paulo vendia no Brasil.

Mas não tinha mais importância. O Iraque _e sua triste e bela capital, e uma guerra cruel que promete durar mais do que o planejado_ já tinha ficado para trás.

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