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18/05/2003 - 13h19

Artigo: João Paulo 2º, entusiasmo, abandono e esperança

MARCIO ANATOLE DE SOUSA ROMEIRO
Especial para a Folha Online

Hoje, dia 18 de maio, o papa João Paulo 2º completa 83 anos. Nascido em Wadovice-Cracóvia (Polônia), ele recebeu o mesmo nome de seu pai Karol Wojtyla. Sua mãe chamava-se Emília Kaczorowska. Era o terceiro de três irmãos e aos 21 anos o único sobrevivente da família.

A lista de serviços prestados à Igreja de seu país é consistente. Aos 26 anos, em 1° de novembro de 1946, é ordenado sacerdote. Doze anos mais tarde, em 4 de julho de 1958 é eleito Bispo Titular de Ombi e Auxiliar de Cracóvia, sendo ordenado bispo em 28 de setembro de 1958. Em 13 de janeiro de 1964 já é Arcebispo de Cracóvia e três anos depois, em 26 de junho de 1967, é feito cardeal da Igreja. Nove anos depois, em 16 de outubro de 1978 e eleito papa, iniciando solenemente seu ministério de Pastor Universal da Igreja Católica em 22 de outubro de 1978.

Algumas rápidas informações biográficas podem ajudar a conhecê-lo melhor. João Paulo estudou em Wadovice e em Cracóvia. Em 1942 entra para o Seminário clandestino que o Arcebispo de Cracóvia mantinha no Arcebispado. Já padre é enviado a Roma, onde doutorou-se em filosofia e moral com tese sobre a ética em São João da Cruz, na Universidade Angelicum, dirigida pelos dominicanos. Neste período conheceu, na Bélgica, o Movimento Juventude Operária Católica - JOC. Em 1954, dá aulas de filosofia na Universidade Católica de Lublin.

Vaticano

Já antes de ser cardeal, participou do Concílio Vaticano 2º, integrando a comissão de redação do documento Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), importante Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, promulgada por Paulo 7º, e pelos demais padres conciliares, em 7 de dezembro de 1965.

João Paulo 2º já falava, além do polonês, latim, italiano, francês, inglês e alemão. Mas tarde, como papa, exercitou-se em vários outros idiomas, especialmente para suas viagens apostólicas. Nas duas visitas ao Brasil e no 2º Encontro Mundial com as Famílias pronunciou-se em nossa língua. Nos encontros com os bispos brasileiros nas visitas quinquenais a Roma (Visitas ad Limina), faz questão de falar português.

Sua eleição em outubro de 1978 o consagra como o primeiro papa polonês da história da Igreja, o primeiro não italiano desde 1522 e o mais jovem (58 anos) desde 1846.

Viagens

Como papa realizou muitas visitas a Dioceses da Itália e a quase todas as de Roma. Dentro de Roma realizou também outras mais de 270 visitas (institutos religiosos, universidades, seminários, hospitais, residências de idosos, cárceres e escolas).

É reconhecido por viagens apostólicas internacionais, tendo estado em mais de cem países. Também foi o papa que mais beatificou Servos de Deus e canonizou Beatos. Em seu pontificado, foi concluída a redação do Código de Direito Canônico, reformulado com base no Concílio Vaticano 2º; e redigido e promulgado o Catecismo da Igreja Católica.

Também foi promulgado o Código dos Cânones das Igrejas Orientais. Escreveu várias encíclicas e exortações apostólicas. Entre as Fundações que criou cabe destacar a Populorum Progressio para o auxilio dos povos indígenas na América Latina. Fundou também a Pontifícia Academia para a Vida e a Academia de Ciências Sociais. Instituiu o Dia Mundial do Enfermo e o Dia Mundial da Juventude.

Papel na Igreja

A descrição dos feitos de um papa, entretanto, pode não dar conta do seu real papel na história em geral e, em particular, na história da Igreja. Sociologicamente, as ações de um líder só podem ser conhecidas e analisadas pelo estudo das ações e omissões que este líder - e a instituição à qual ele se vincula - realiza na história. Então, podemos também dizer que com o papa João Paulo 2º, enquanto pastor supremo da Igreja Católica Apostólica Roma e chefe do Estado do Vaticano, não é diferente.

Ao considerarmos este pontificado, já nos seus quase 25 anos, pelo menos para alguém que se reconhece como membro da instituição que está sob o pastoreio de João Paulo 2º, é preciso também reconhecer que para além da narrativa sociológica é de grande importância e necessidade uma teologia pastoral capaz de oferece as ferramentas necessárias para uma correta hermenêutica dos rumos impressos, pelo dirigente, à instituição por ele dirigida.

Mensagens do papa

Primordialmente a teologia mostra onde se quer chegar, ou mais exatamente qual é, para dizer em um vocabulário religioso, a missão da Igreja. Trata-se, portanto, do consensual reconhecimento de que a Igreja deve anunciar o Evangelho de Jesus.

Para não multiplicar as citações, cito dois textos. Um do próprio papa e outro dos bispos latino americanos. O primeiro encontra-se na importante carta apostólica: Novo Millennio Ineunte (No início do novo milênio). "Sinto, por isso", escreve João Paulo 2º, "a necessidade de dirigir a vós, irmãos muito amados, para partilhar convosco o cântico de louvor, Neste ano santo 2000, tinha eu pensado como uma data importante, desde o princípio do meu pontificado. Tinha previsto esta celebração como um momento providencial em que, 35 anos depois do Concílio Ecumênico Vaticano 2º, a Igreja seria convidada a interrogar-se sobre a sua renovação para assumir com novo impulso a sua missão evangelizadora".

Desta forma, podemos dizer que falar do pontificado do papa João Paulo 2º é falar da preocupação com o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo.

América Latina

O outro texto que gostaria de destacar aqui é de 1979. Por ocasião da Conferência de Puebla (México) os bispos da América Latina, na Mensagem aos Povos da América Latina, escreveram: "nossa primeira pergunta, neste colóquio pastoral, diante da consciência coletiva é a seguinte: - vivemos de fato o Evangelho de Cristo em nosso Continente? Esta interpelação, que dirigimos aos cristãos, também pode ser analisada por todos aqueles que não partilham de nossa fé. O cristianismo, que traz consigo a originalidade do amor, nem sempre é praticado em sua integridade nem mesmo por nós cristãos (...). Queremos não só ajudar os outros a se converter, mas também converter-nos, nós próprios, juntamente com eles, de tal modo que nossas dioceses, paróquias, instituições, comunidades e congregações religiosas, longe de serem obstáculo sejam um incentivo para que se viva o Evangelho. Lançando um olhar sobre nosso mundo latino-americano, com que espetáculo deparamos? Não se faz mister aprofundar o exame. A verdade é que aumenta, cada dia mais, a distância entre os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito. Estão ameaçados os valores de nossa cultura. Estão sendo violados os direitos humanos fundamentais do ser humano. (...) O que temos para oferecer-vos? Como Pedro, diante do pedido que lhe foi dirigido pelo paralítico, à porta do templo, vos declaramos, ao considerar a grandeza dos desafios estruturais de nossa realidade: Não temos ouro nem prata para vos dar, mas damo-vos o que temos: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levantai-vos e andai (cf. At 3,6). E o doente se ergueu e proclamou as maravilhas do Senhor. Aqui, a pobreza de Pedro se faz riqueza e a riqueza de Pedro se chama Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado e sempre presente, por seu Espírito Divino, no Colégio Apostólico e nas incipientes comunidades que se formaram debaixo de sua direção. Jesus cura o doente. O poder de Deus exige dos homens o máximo de esforço para que surja e dê fruto sua obra de amor, através de todos os meios disponíveis: forças do espírito, conquistas da ciência e das técnicas em favor do homem".

Paradoxos

Com estas duas citações quis destacar a sintonia entre o papa, no início de seu pontificado, e o episcopado latino americano particularmente no campo da teologia pastoral que sustenta a ação e a presença da Igreja na história.

As dificuldades começam quando a discussão deixa de focar a missão da Igreja e passa a considerar os modos e meios necessários para a realização desta missão. Estas dificuldades chegam, não raras vezes, a verdadeiros conflitos. Isso porque, se do ponto de vista do ideal a ser conseguido a Igreja é uma comunhão, do ponto de vista de seu presente sociológico ela se constitui a partir de uma composição plural.

Na Igreja convivem pessoas e instituições muito distintas, e todas elas, paradoxalmente, querem anunciar Jesus Cristo. É claro que o próprio papa, e nisto está a personalidade de um líder, reforçou alguns modos e meios em detrimentos de outros possíveis, afinal é impossível agir politicamente sem fazer escolhas.

Entusiasmo em visita ao Brasil

Deste modo o papa João Paulo 2º foi recebido, também aqui no Brasil, com especial entusiasmo. Uma rápida visita a alguns documentos da Igreja pode indicar as razões deste entusiasmo esperançoso. Já no início do seu pontificado, em 28 de janeiro de 1979, apenas três meses após o início de seu governo, no discurso inaugural da Conferência de Puebla, o papa reafirma: "é um grande consolo para o pastor universal constatar que vos congregais aqui, não como um simpósio de peritos, não como um parlamento de políticos, não como um congresso de cientistas ou técnicos, por mais importantes que possam ser estas reuniões, mas como um fraterno encontro de pastores da Igreja. E como pastores tendes a viva consciência de que vosso dever principal é de ser mestres da verdade. Não de uma verdade humana e racional, mas da verdade que vem de Deus, que traz consigo o princípio da autêntica libertação do homem: "conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres' (Jo 8, 32)".

E mais à frente, no mesmo, discurso acrescenta ainda que "a ação da Igreja em campos como os da promoção humana, do desenvolvimento, da justiça, dos direitos da pessoa, quer estar sempre a serviço do homem; e ao homem como o vê na visão cristã da antropologia que adota. Não necessita pois recorrer a sistemas e ideologias para amar, defender e colaborar na libertação do homem: no centro da mensagem da qual é depositária e anunciadora, ela encontra inspiração para agir em favor da fraternidade, da justiça, da paz, contra todas as dominações, escravidões, discriminações, violências, atentados à liberdade religiosa, agressões contra o homem e tudo o que atenta contra a vida".

Ditadura e pobreza

Para uma Igreja que estava sentindo o peso de uma ditadura militar e que começava justamente a perceber que a "pobreza não é uma etapa causal, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas"; para uma Igreja que passava a perceber a realidade como exigente convite à "conversão pessoal e transformação profunda das estruturas", o pontificado de João Paulo 2º, o papa vindo do Leste, era ocasião para descobrir na extrema pobreza - na qual se encontram as crianças golpeadas pela fome antes de nascer, os jovens desorientados por não encontrar um lugar na sociedade, os indígenas e os afro-americanos que vivem segregados e em situações desumanas, os camponeses que em quase todo continente estão submetidos à dependência, os operários, os subempregados e os desempregados, os marginalizados e os velhos - o rosto sofredor de Cristo, o Senhor que interpela.

Este entusiasmo cresceu ainda mais quando em 14 de setembro de 1981 nos foi apresentada Encíclica Laborem Exercens (sobre o trabalho humano). Prevista para ser publicada em 15 de maio de 81, no 90° aniversário da Encíclica Rerum Novarum, Laborem Exercens. trazia fortes argumentos em favor de uma melhor relação entre trabalho e capital.

O "trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o 'capital', sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que resulta de toda a explicação histórica do homem", diz a encíclica.

Hegemonia neoliberal

Aos poucos, porém, particularmente entre nós, o que parecia ser a afirmação de um modelo não liberal, isto é, de um modelo contrário aos interesses defendidos pelos países capitalistas tendo os Estados Unidos à frente, passa a se apresentar, ou pelo menos a ser utilizado, como um instrumento na luta pela unificação dos paradigmas sob a hegemonia neoliberal.

Neste período vemos crescer a influência de grupos que, do ponto de vista de uma sociologia narrativa, podem ser classificados como direita política. Caso típico é o crescimento do Opus Dei. Além disso, quando se considera o tratamento dado, por exemplo, à Nicarágua, a El Salvador de Dom Oscar Romero, aos Teólogos da Libertação no Brasil, ao processo de divisão da Arquidiocese de São Paulo, se pode dizer que as atitudes do papa e de seus colaboradores imediato, para toda uma geração, tornaram a fé no evangelho de Jesus um fardo duro de ser carregado.

É claro que se por um lado, quando se considera o conjunto da cristandade, talvez algumas correções fossem necessárias; de outro lado, porém, não se pode negar que o que estava - e ainda continua - em jogo não é a missão da Igreja, mas sim como e através de que meios esta missão deve se realizar.

Religião e política

É difícil imaginar o que seria da Nicarágua se o papa tivesse acolhido Ernesto Gardenal da mesma forma como acolheu Helder Câmara no Rio de Janeiro. É difícil imaginar o que significaria e quais seriam as consequências, para os operários e para as Comunidades de Base, de uma suposta beatificação ou canonização de um Santo Dias da Silva ou de Oscar Arnufo Romero.

Uma coisa, porém, é certa, ao trabalhar pela queda do Muro de Berlim e o consequente desmantelamento do mundo comunista, as ações do papa e de seus colaboradores diretos contribuíram para a destruição de sentidos existenciais, razão pela qual dizia acima que para uma geração o sonho de ver a política irmanada com a religião na defesa dos pobres precisou ancorar-se na fé de que o evangelho de Jesus é superior aos meios e instrumentos utilizados para anunciá-lo.

Por isso, muitas vezes é preciso esperar para que a Igreja, no cumprimento de sua missão, reveja seus métodos e suas estruturas.

"Globalização da solidariedade"

Contudo, se ao entusiasmo segue-se o sentimento de abandono, à solidão segue-se a esperança. Muitos seriam os trechos da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in América (Igreja na América) que gostaria de transcrever aqui.

Depois de criticar a globalização "dirigida pelas puras leis do mercado aplicadas conforme a conveniência dos mais poderosos" (º 20), João Paulo 2º propõe a "globalização da solidariedade" (º 55) afinal, "à luz da doutrina social da Igreja, compreende-se melhor a gravidade dos pecados sociais que clamam ao céu, porque geram violência, rompem a paz e a harmonia entre as comunidades de uma mesma nação, entre nações e as distintas zonas do continente". Entre eles devem ser lembrados, "o tráfico de drogas, a lavagem de lucros ilícitos, a corrupção em qualquer ambiente, o terror da violência, a corrida armamentista, a discriminação racial, as desigualdades entre os grupos sociais, a destruição irracional da natureza".

Esses pecados manifestam uma crise profunda devida à perda do sentido de Deus e à ausência dos princípios morais que devem nortear a vida de cada homem. Sem referências morais, cai-se na avidez desenfreada de riqueza e de poder, que ofusca qualquer visão evangélica da realidade social. Não raro, isso leva algumas instâncias públicas a descurar a situação social. Domina cada vez mais, em muitos países americanos, um sistema conhecido como 'neoliberalismo'; sistema que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado parâmetros absolutos em detrimento da dignidade e do respeito da pessoa e do povo.

Por vezes, esse sistema transformou-se numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político que provocam a marginalização dos mais fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas. A melhor resposta, a partir do Evangelho, para essa dramática situação é a promoção da solidariedade e da paz, em vista da efetiva realização da justiça.

Guerra no Iraque

A esta crítica ao neoliberalismo, acrescenta-se ainda a recente, porém firme posição do papa desaprovando a guerra anglo-americana contra o Iraque. Essas últimas atitudes podem até não expressar um posicionamento mais à esquerda, contudo, cumprem o papel de estimular a busca de uma nova ordem mundial da qual, para se dizer em linguagem teológica, "ninguém pode ser excluído do nosso amor", uma vez que, "pela encarnação, ele, o Filho de Deus, uni-se de certo modo a cada homem"; mas, segundo as palavras inequívocas do Evangelho que acabamos de referir [Mt 25, 35-36], há na pessoa dos pobres uma especial presença de Cristo, obrigando a Igreja a uma opção preferencial por eles.

Por meio dessa opção, testemunha-se o estilo do amor de Deus, a sua providência, a sua misericórdia, e de algum modo continua-se a semear na história aqueles germens do Reino de Deus que foram visíveis na vida terrena de Jesus, ao acolher a quantos recorriam a ele para todas as necessidades espirituais e materiais.

É claro que como o "cristianismo é religião entranhada na história" toda e qualquer consideração sobre determinado período, sobretudo ao qual somos contemporâneos, é sempre melindrosa, porém penso que as três palavras - entusiasmo, abandono e esperança - dão conta destes 25 anos do pontificado de João Paulo 2º. Resta, portanto, saber que será feito desta postura crítica esboça contra o neoliberalismo e dos engajamentos em favor da paz. De minha parte espero que a Igreja não perca a chance de se reencontrar com os grandes sonhos da humanidade.

  • Marcio Anatole de Sousa Romeiro é doutor em Filosofia e coordenador do Serviço de Pastoral da PUC-SP.

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