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20/03/2004 - 03h38

Iraque piorou sob os EUA, diz estudioso

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SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo

Há um ano, durante a Guerra do Iraque, quando Bagdá abrigava os cerca de 80 jornalistas que tinham permanecido na cidade sob bombas, não era raro ver repórteres carregando, entre colete e capacete à prova de balas e máscara antigás, um exemplar de capa mole (mais leve para carregar na mochila) de um livro de Dilip Hiro.

De nome curioso e sonoro, este indiano radicado em Londres é uma das autoridades em Oriente Médio, Iraque e Saddam Hussein, não necessariamente nesta ordem, mas necessariamente três assuntos cabeludos, que ele destrincha e explica em títulos como "Iraq - In The Eye of The Storm" (Iraque, no olho da tempestade), o mais recente, "Secrets and Lies -Operation Iraqi Freedom" (segredos e mentiras, operação liberdade iraquiana), e outros.

Colaborador de jornais que vão do norte-americano "The New York Times" ao britânico "The Guardian", o escritor e jornalista liberal deu entrevista à Folha de S.Paulo por e-mail, uma conversa que começou há duas semanas e teve diversos complementos diante dos últimos acontecimentos em Madri.
Sua opinião? O Iraque está pior do que há um ano, a guerra poderia ter sido evitada e o ataque terrorista na Espanha é o governo George W. Bush colhendo os primeiro frutos do que Dilip Hiro chama de "guerra sem fim".

Folha - O Iraque está melhor ou pior do que um ano atrás?
Dilip Hiro - Melhor ou pior em que sentido? Econômica, social e politicamente? Economicamente, o desemprego está entre 60% e 75%. Ao dissolver integralmente as Forças Armadas, a polícia e o serviço público, o comando norte-americano da ocupação, a Autoridade Provisória da Coalizão [APC], não só criou imenso desemprego, mas também um vácuo na administração da segurança que permite aos insurgentes operarem com latitude muito mais ampla do que seria o caso se a APC tivesse procedido de forma mais gradual --como a ONU fez na Bósnia, por exemplo.

Politicamente, nada está definido ainda. Antes da invasão anglo-americana, o Departamento de Estado dos EUA estabeleceu diversos comitês para estudar diferentes aspectos do Iraque pós-Saddam. O comitê cujo tema era a democracia concluiu em seu relatório que o processo de transição para a democracia no país levaria três anos, ou 36 meses.

Agora, o processo foi comprimido para sete meses. Por quê? Para que se encaixe no calendário eleitoral norte-americano. Assim, qual deveria ser a prioridade: a estratégia de curto prazo de Bush para se reeleger ou o bem-estar do povo iraquiano no longo prazo? Que os leitores decidam.

Folha - O sr. acha que uma nova Constituição iraquiana, com valores ocidentais, "pegaria"?
HiroQuem fala sobre influência e valores norte-americanos na Lei Administrativa de Transição (LAT), a Constituição interina ora em vigor no Iraque, deveria ler a Constituição da República Islâmica do Irã, da qual consta uma longa lista de direitos do cidadão.

Os pontos principais são o papel do islã e os poderes da Presidência. Quanto a isso, vemos que o islamismo é a religião oficial da LAT --o que não é o caso na vizinha Síria, onde não existe religião oficial. Segundo, a importância da sharia --ou lei islâmica-- como fonte primária das leis iraquianas: fonte única ou apenas influência? Por enquanto, eles optaram por tomar a sharia apenas como influência, mas por quanto tempo?

Pesquisas demonstram que 56% da população deseja uma República Islâmica do Iraque. Mas Paul Bremer, que comanda a APC, já afirmou publicamente que vetaria um documento que contivesse artigos nesse sentido. É essa a "liberação" concedida aos iraquianos, que nem sequer podem exercer seu direito à autodeterminação. Quanto à Presidência, os xiitas desejam que a chefia de governo caiba ao presidente, mas os demais grupos não concordam e preferem conceder a maior parte dos poderes executivos a um primeiro-ministro.

Folha - O mais provável é que o próximo líder seja xiita. Isso não levaria a uma aliança com o Irã?
Hiro - Como disse, a maioria deseja uma República islâmica no Iraque. Há três modelos na região: Arábia Saudita, Irã e Turquia. Ainda não se sabe que modelo o Iraque escolherá. Mas não há qualquer dúvida de que será no mínimo amistoso para com o Irã --ou talvez até um aliado estreito. Quanto à influência, temos Irã e EUA, com cartas igualmente fortes, e é provável que o jogo continue até as eleições presidenciais dos EUA, em novembro.

Folha - Bem ou mal, a invasão anglo-americana livrou o Iraque de um ditador. O sr. acredita que havia alternativa à guerra?
Hiro - Você presume que os anglo-americanos tenham invadido o Iraque para livrar o país da ditadura. Mas que sistema prevalece na Arábia Saudita ou em qualquer outro Estado rico em petróleo do golfo Pérsico, agora? A democracia liberal? A questão é: por que o Iraque? E por que agora? A razão primordial que os anglo-americanos deram para a invasão era o fato de que Saddam estaria equipado com armas de destruição em massa que poderiam ser disparadas em 45 minutos. Assim, os EUA e o Reino Unido corriam "perigo claro e iminente". Mas a ameaça não existia de fato.

Se a questão fosse introduzir a democracia no Iraque sem a invasão anglo-americana, Saddam ofereceu um acordo. De acordo com o "New York Times" e com o "Guardian" de 7 de novembro de 2003 --e contrariando as alegações de Bush e do primeiro-ministro britânico, Tony Blair, de que todas as abordagens para uma resolução pacífica da crise iraquiana já se haviam esgotado--, Saddam Hussein ofereceu em fevereiro daquele ano um acordo que satisfaria Bush e Blair quanto a todos os aspectos importantes da crise: armas de destruição em massa no Iraque, o processo de paz no Oriente Médio, acesso das empresas petroleiras norte-americanas ao petróleo e a democratização do Iraque.

De acordo com as reportagens nesses jornais [confirmadas pelas partes envolvidas], a proposta de Saddam era a de que 2.000 agentes da CIA e do FBI fossem enviados ao Iraque para procurar armas de destruição em massa em qualquer lugar do país. Saddam prometeu que acataria qualquer acordo definido entre Israel e as principais lideranças palestinas. Prometeu dar às corporações petroleiras norte-americanas uma fatia na prospecção e na extração de petróleo. E prometeu eleições livres e pluripartidárias no Iraque, sob supervisão internacional, em prazo de dois anos.

Mas Bush estava tão determinado a invadir o Iraque que recusou de primeira qualquer consideração da oferta de Saddam e uma solução pacífica para a crise.

Folha - O sr. acha que é possível um regime democrático no país?
Hiro - Imagine Bush discursando aos norte-americanos: "Quero fazer do Iraque um país democrático, e isso implicaria gastar US$ 166 bilhões, com mais US$ 1 bilhão por semana durante 25 semanas, bem como o sacrifício de mais de 550 soldados americanos --além de 10 mil civis e 13 mil soldados iraquianos--, e a destruição de US$ 100 bilhões de infra-estrutura". Quem aprovaria?

Uma estatística monumentalmente importante da qual o Comando Central norte-americano deve dispor, mas ainda não divulgou, é o custo dos danos causados à infra-estrutura do Iraque pelas seis semanas de guerra e pela semana de saques e incêndios generalizados que se seguiu ao final do conflito. Meu palpite _com base nos US$ 200 bilhões de danos causados à infra-estrutura iraquiana pela Guerra do Golfo, em 1991_ é de US$ 100 bilhões. E quanto Washington reservou para a reconstrução? Míseros US$ 16 bilhões, em três anos.

Folha - O ataque terrorista em Madri já seria efeito do que o sr. chama de "guerra sem fim"?
Hiro -Uma das marcas da estratégia da Al Qaeda é montar mais de um ataque ao mesmo tempo para criar o máximo de confusão e causar o maior número possível de baixas. O raciocínio deles em Madri estaria vinculado à presença de um grande número de soldados espanhóis entre as forças de ocupação do Iraque.

Escrevi que "enquanto houver alguém aterrorizando os governos estabelecidos, é preciso que haja guerra, o que é uma receita para uma guerra sem fim". Meu conceito se baseia na definição frouxa de terrorismo que o governo Bush cunhou e adotou. Para começar, o terrorismo não é uma ideologia --é uma metodologia, uma tática, que não é monopólio de qualquer grupo e também é usada por governos.

De fato, as pessoas que vivem na América Latina experimentaram terrorismo de Estado em proporção bem maior do que a maior parte dos demais povos. Além disso, se descrevermos o assassinato político como método terrorista, é preciso admitir que existe há milhares de anos na história da humanidade. Será que a "guerra contra o terrorismo" de Bush porá fim aos assassinatos políticos nos EUA e em outros países?

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