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07/05/2006 - 09h32

Racha na AL era inevitável, dizem analistas

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RAUL JUSTE LORES
da Folha de S.Paulo

A surpresa dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e do argentino Néstor Kirchner com a nacionalização do gás boliviano demonstrou que algo não vai bem entre os líderes da esquerda latino-americana. O boliviano Evo Morales nem avisou previamente os colegas. Quem soube da medida antes --e a aprovou-- foi o venezuelano Hugo Chávez.

As últimas semanas foram ricas em desmentir que um bloco unido com afinidades à esquerda estava surgindo na América Latina.

Na sexta-feira, Kirchner liderou uma manifestação com milhares de pessoas contra a instalação de fábricas de celulose no Uruguai, que poluiriam o rio Uruguai, que separa os países. O presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, quer as fábricas e se sente perseguido por Kirchner.

Por sua vez, o presidente uruguaio passou a semana dando sinais de que abandona o Mercosul em troca de acordo comercial com os Estados Unidos. "Do jeito que está, não serve", afirmou.

Se o Mercosul está em crise, pior está a Comunidade Andina de Nações (CAN). Chávez anunciou que a Venezuela sai do bloco por conta dos tratados de livre comércio que Colômbia e Peru, outros membros do bloco, assinaram com os EUA. Entrou em um violento bate-boca com o presidente peruano, Alejandro Toledo. Evo Morales disse que há governos "de desintegração regional" e insinuou que a Bolívia também vai abandonar a CAN.

Apesar do consenso de que a América Latina continua invisível nos radares dos EUA, o país vem costurando na surdina diversos tratados de livre comércio. Chile, México, América Central, Colômbia e Peru já têm o seu, Equador está perto de assinar, e Uruguai e Paraguai sonham com o acesso preferencial ao mercado americano.

"Os ideólogos da Casa Branca e do Departamento de Estado não têm tempo para a América Latina. Então o assunto ficou nas mãos dos profissionais, que, sem estridência, avançam em acordos comerciais", diz a jornalista Rossana Fuentes-Beráin, editora-chefe da edição em espanhol da revista Foreign Affairs. Não por acaso, "Esquerdas" é o tema de capa da revista neste mês.

Chávez "útil"

Com dedo americano ou não, o certo é que as esquerdas têm se dividido em dois grupos, segundo Fuentes-Beráin: os neopopulistas e os social-democratas. Só que até há pouco, os dois grupos preferiam ressaltar sua coesão e sua afinidade ideológica.

Há sete anos no poder, o presidente Hugo Chávez mereceu mais elogios do que críticas ou desconfiança de seus pares, apesar das muitas brigas em que se envolveu e da retórica inflamada. "Chávez foi muito habilidoso em manter uma política externa generosa. Comprou bonos da dívida argentina e distribuiu petróleo a preços baixos pelo Caribe", diz o professor de Ciência Política do Amherst College, PhD em Harvard, o americano Javier Corrales.

"Chávez é útil aos presidentes de esquerda excessivamente moderados na região. Ser amigo dele é uma maneira de contentar os mais radicais internamente, que amam o venezuelano."

Só que a conduta do líder venezuelano mudou muito recentemente. Antes, era acusado, sem provas, de colaborar com as guerrilhas das Farc na Colômbia, de ajudar financeiramente campanhas de aliados, como Morales, na Bolívia, ou Daniel Ortega, na Nicarágua.

Sua intromissão em temas alheios se tornou mais escancarada. Há quinze dias, Chávez participou de uma reunião no Paraguai, com vários presidentes da região. Endossou as críticas dos presidentes paraguaio e uruguaio de que os países pequenos não eram ouvidos no Mercosul. Lula e Kirchner, que não estavam no encontro, não gostaram nada da intromissão de Chávez, futuro sócio pleno do Mercosul.

A participação do venezuelano na campanha presidencial peruana também não é nada discreta. O ministro da Comunicação da Venezuela já manifestou que quer a vitória do ex-militar nacionalista Ollanta Humala, no segundo turno, em 4 de junho. O adversário de Humala, o ex-presidente Alan García, passou a atacar Chávez.

Vários analistas políticos concordam que a intromissão de Chávez na política peruana ajuda García. "O paradoxo é que García foi o Hugo Chávez dos anos 80, anti-imperialista, estatista e de esquerda", diz o jornalista e escritor peruano Alvaro Vargas Llosa, diretor da ONG Centro de Prosperidade Global, de Washington.

A briga entre Chávez e García virou questão nacional. Tanto Peru como Venezuela retiraram na última semana seus embaixadores de Caracas e Lima.
Para Vargas Llosa, o racha era inevitável. "Com seus governos moderados, Lula, Tabaré e Bachelet têm mais proximidade com os conservadores Uribe, da Colômbia, ou Fox, do México, que com Chávez e Castro."

Pragmatismo no poder

Se Hugo Chávez quer virar o líder da esquerda latino-americana à força, deve enfrentar muita resistência. "Todo mundo gosta de falar de unidade, mas sem alguém que "mande". Assim como o Brasil provoca ressentimentos dos vizinhos quando exibe sua liderança, Chávez vai enfrentar problemas", diz o professor Corrales. "Todos são nacionalistas, então não aceitam ingerências externas impunemente."

Apesar da insatisfação do eleitorado latino-americano com as reformas neoliberais dos anos 90, que fracassaram em produzir grande crescimento econômico ou reduzir a pobreza e a desigualdade social na maior parte da região, os eleitores não votaram em revolução.

"O voto na esquerda é consciente e é um protesto, mas Lula e Tabaré só chegaram ao poder depois de moderar seu discurso", diz Fuentes-Beráin. O que os afasta naturalmente de Chávez. "A economia foi deixada para os técnicos, enquanto as políticas sociais e de redução da pobreza viraram os grandes diferenciais desses governos mais moderados."

Assim como o candidato peruano Alan García, o socialista León Roldós, favorito para as eleições do Equador, em outubro, também quer distância de Chávez. "Lula, Bachelet e Tabaré são modelos para a esquerda responsável no poder", afirmou em abril.

A crise do Mercosul e da Comunidade Andina de Nações mostra que uma nova América do Sul está em formação. E a disputa pela liderança e pelas parcerias já começou. Para o cientista político argentino Juan Gabriel Tokatlian, a Bolívia é o "coração" da disputa.

"A antiga estrutura colapsou. A Comunidade Andina implodiu com Chávez e com assinatura de tratados de livre comércio com os EUA, e o Mercosul também está em cacos", afirma.

A Bolívia teria um valor simbólico grande. "Pode chegar a incorporar um triângulo mais virtuoso ao meu ver, com Kirchner e Lula atraindo Morales para um campo mais moderado, ou pode integrar um mais complicado, com Caracas e Havana."

Tokatlian descarta um alinhamento do argentino Kirchner com o trio Castro-Chávez-Morales, apesar das investidas do venezuelano --que comprou US$ 1,2 bilhões em títulos da dívida externa argentina.

A maneira mais "pública" de Chávez interferir na política regional é parte desse rearranjo de forças. "Ele tem muitos petrodólares na mão, uma oposição enfraquecida em casa e muita vaidade para influenciar além das fronteiras", diz Corrales.

Para Vargas Llosa, há relação direta entre o aumento do barulho que faz e a perda de influência regional. "Ele precisa de Morales e da vitória de Humala no Peru para não se isolar. Os demais querem estar bem com os Estados Unidos. Kirchner é ambíguo, desconfiado. E Lula ou o México são grandes demais para ficar sob a órbita da Venezuela."

Do México, não deve surgir uma grande mudança, apesar da disputa acirrada entre o conservador Felipe Calderón, que aprofundaria as reformas mais neoliberais, e do populista Andrés Manuel López Obrador. "Há pouca margem de manobra pela associação econômica e política com os EUA", diz Fuentes-Beráin.

Se Chávez vai se radicalizar ou se adaptará à nova esquerda moderada é a grande dúvida dos especialistas. "É a primeira vez que a esquerda governa a maioria dos países da região. E a esquerda já tinha várias divisões antes de chegar ao poder", diz Corrales. "Em quase 200 anos de independência de Portugal e Espanha, foram feitos vários esforços latino-americanos para unificar a região. Até agora, todos fracassaram. Não é culpa da esquerda."

Colaborou Flávia Marreiro, de Buenos Aires

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