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22/08/2006 - 02h35

"EUA cometeram no Líbano mesmo erro que no Iraque", diz filósofo

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CAROLINA VILA-NOVA
da Folha de S.Paulo

Ao adiar um posicionamento sobre a guerra no Líbano, o governo do presidente George W. Bush incorreu no mesmo erro de cálculo que cometeu no Iraque: imaginou que, ganhando tempo, Israel destruiria o Hizbollah e assim resolveria militarmente um problema político. Agora ambos, Israel e EUA, se vêem diante de uma situação de fracasso diante de um oponente militarmente inferior.

A análise é do célebre filósofo americano Francis Fukuyama, um dos papas do neoconservadorismo que se voltou contra muitos dos preceitos que defendia. Nesta semana, ele lança no Brasil "O dilema americano - Democracia, poder e o legado do neoconservadorismo", pela editora Rocco, que trata do fracasso americano no Iraque e defende uma mudança na política exterior de Washington. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.

Folha de S.Paulo - Depois do fracasso americano no Iraque, ainda é razoável defender uma ação unilateral e preventiva na cena internacional?

Francis Fukuyama
- Parte do argumento do meu livro é que isso já não era certo desde o início. Mas o que aconteceu no Iraque salientou o fato de que mesmo para a única superpotência mundial é difícil usar seu poder de modo eficaz para atingir os fins políticos que deseja. Os EUA são tão mais poderosos em termos militares, econômicos e políticos que qualquer outro país e ainda assim não conseguem controlar os resultados políticos nesse pequeno país. De certa maneira, a guerra no Líbano é mais um exemplo disso. Israel obviamente tem uma superioridade militar sobre todos os seus vizinhos mas não consegue controlar os eventos nessa pequena faixa de território de algumas dezenas de quilômetros na sua fronteira.

Folha de S.Paulo - Esse fracasso e o subseqüente aumento do antiamericanismo exigem uma revisão dos princípios de política externa de Bush?

Fukuyama
- Sim, e é precisamente a razão por que escrevi esse livro. Os EUA precisam de um tipo bastante distinto de política externa. Muitos dos pensadores neoconservadores cujas idéias foram importantes para o governo Bush tinham a idéia de que os EUA usariam seu poder de maneira benevolente para lidar com terrorismo, armas de destruição em massa e violações de direitos humanos e que seriam vistos com legitimidade pelo resto do sistema internacional mesmo se inicialmente as pessoas não concordassem com sua política. E agora parece bem claro que isso não funciona, que as pessoas não legitimam o uso que os EUA fazem do poder. Além disso, esse poder é exercido de maneira pouco competente, então é muito difícil dizer "confiem nos EUA para lidar com esse problema" se os EUA têm tido tantos problemas para executar e atingir os objetivos que estabelecem.

Folha de S.Paulo - O que saiu errado no Iraque? Os EUA foram otimistas demais em pensar que poderiam mudar um regime pela via militar?

Fukuyama
- É uma variedade de coisas. O próprio conceito da guerra não foi correto e, mesmo com uma melhor execução, não acho que eles teriam tido sucesso porque as condições para a estabilidade, e muito menos para a democracia, não existiam naquele país. Havia diferenças étnicas e religiosas muito sérias, havia todo o legado do regime totalitário que deixou o país sem uma elite política que poderia administrar uma transição para um novo tipo de governo. Mas os EUA aumentaram o problema com sua total falta de planejamento para o difícil período do pós-guerra e isso se deveu a considerações extremamente otimistas. Ao argumentar a favor da guerra, todos fizeram as mais pessimistas considerações sobre o programa iraquiano de armas de destruição em massa e probabilidade de o Iraque representar um grande perigo aos EUA e à região, mas ao planejar o pós-guerra eles fizeram as considerações mais otimistas. E as duas coisas estão relacionadas porque o governo estava tentando persuadir as pessoas com o argumento de que seria bastante barato e fácil e não queriam confrontar a possibilidade de que fosse difícil e longo porque então seria mais difícil persuadi-los.

Folha de S.Paulo - Qual é o problema de ligar mudanças de regime com o antiterrorismo como parte de uma estratégia de segurança como o governo Bush fez?

Fukuyama
- Não é uma política ridícula por si só. No Afeganistão, derrubou o regime do Taleban em resposta ao 11 de Setembro e não acho que ninguém argumentaria que isso foi ilegítimo ou uma resposta inapropriada ao desafio que foi colocado. Mas acho que a mudança de regime com o objetivo de interromper a proliferação nuclear, por exemplo, é muito problemático porque é muito difícil mudar regimes para via militar. Sem promover uma alternativa estável você realmente não resolve o problema. Por isso é que no caso da Coréia do Norte e do Irã o governo nem sequer indicou que poderia fazer uso do poder militar.

Folha de S.Paulo - O Irã tem de responder amanhã [hoje] se aceita o pacote de incentivos da comunidade internacional ou se continua seu programa nuclear. O sr. considera improvável que os EUA entrem em uma guerra preventiva contra o Irã e também relembra a ineficácia das sanções contra o Iraque. Qual seria a saída?

Fukuyama
- Infelizmente, não tenho certeza de que exista uma boa saída. Algumas pessoas esperam que seja possível mudar o regime sem uma guerra, por meio do uso de grupos dissidentes ou pró-democracia, mas na situação atual isso não teria muito êxito. Mesmo o governo Bush não está muito entusiasmado com a idéia de começar uma operação militar contra o Irã. Eles esperavam que a guerra no Líbano puniria o Hizbollah e assim frearia os iranianos, mas isso não funcionou. Uma possibilidade é simplesmente continuar com esse jogo, tentar manter vivo algum tipo de processo político e esperar que eventualmente o regime caia.

Folha de S.Paulo - Os EUA e a ONU foram criticados por não agir mais rapidamente em relação ao Líbano. Eles poderiam ter agido antes, e como?

Fukuyama
- O governo americano poderia ter agido antes, mas não quis porque queria dar a Israel tempo suficiente para destruir o Hizbollah. Por isso, deliberadamente freou o cessar-fogo. Em parte isso foi em apoio a Israel mas também se baseou no mesmo erro intelectual que ele cometeu no Iraque, de pensar que o poderio militar poderia resolver o problema político do poder do Hizbollah no sul e que seria apenas uma questão de tempo para que o Exército de Israel destruísse a organização e mudasse o balanço de poder no Líbano, o que obviamente não aconteceu. Quanto à ONU, não é realmente culpa dela. O fato de não haver um cessar-fogo até agora era porque não havia um acordo. Essas coisas requerem que as partes envolvidas sejam convencidas de que não têm mais opções militares. E mesmo agora isso não está claro. É um cessar-fogo frágil e há várias maneiras de se imaginar que a guerra possa recomeçar porque os israelenses estão muito insatisfeitos com o resultado, o Hizbollah foi
atingido mas não derrotado e é muito difícil que essa força internacional de paz tenha força suficiente para conseguir uma estabilidade de longo prazo.

Folha de S.Paulo - O sr. diz que a maior ameaça na questão do radicalismo islâmico não está no Oriente Médio, mas na juventude alienada e em busca de identidade em lugares como Londres e Madri. Como essa ameaça pode ser "neutralizada"?

Fukuyama
- É uma questão difícil. Em última instância, o grande problema é que a maioria dos países europeus não são muito bons em integrar pessoas e comunidades de imigrantes muito diversas e de várias raízes culturais. Isso é algo enraizado culturalmente, há um senso de pertinência que é muito mais baseado na etnicidade e na experiência histórica compartilhada na Europa do que em outras partes do mundo. Isso é uma coisa que vai depender do trabalho dos europeus de integração, de dar trabalho a essas pessoas e fazê-las sentir que fazem parte de uma sociedade maior. Por outro lado, eles cometeram o erro de ser tolerantes demais com grupos extremistas sob o argumento de um multilateralismo que também não funcionou e prejudicou a integração. E isso tudo é política doméstica.

Folha de S.Paulo - Que balanço pode haver entre a luta antiterrorista e a proteção de direitos civis?

Fukuyama
- É difícil responder isso em termos abstratos. Os EUA provavelmente foram longe demais ao dar ao governo poder... na verdade, definitivamente foram longe demais, com o abuso de prisioneiros, detenções sem o devido processo. Esse é um problema que ocorreu por toda a América Latina nos anos 70, onde, sob o argumento de lutar contra o terrorismo, foram suspensos todos os tipos de liberdades civis. É muito decepcionante que os EUA estejam praticando esse tipo de comportamento.

Folha de S.Paulo - O sr. disse que os EUA superestimaram a ameaça do radicalismo islâmico. Que tipo de ameaça isso representa hoje?

Fukuyama
- Essa versão do islamismo realmente ameaça uma série de regimes, como no Egito, na Jordânia e na Síria. Um grande problema para o qual as pessoas não atentaram ainda é o aumento do poder xiita. No golfo Pérsico os xiitas são cerca de 60% da população, e o Iraque será o primeiro país árabe em que eles terão controle do governo. Isso irá mexer no equilíbrio político entre os sunitas e os xiitas em toda a região. Neste momento é difícil prever o resultado disso, mas se a violência sectária espirrar do Iraque, o que acho bastante provável, isso será uma fonte importante de instabilidade.

Folha de S.Paulo - Qual é o dilema americano?

Fukuyama
- Há uma escolha entre continuar com esse tipo de política unilateral ou reconhecer os limites dessa tentativa de usar o poder militar para redesenhar o mundo e colocar maior ênfase no uso de instrumentos de "soft power" e um tipo de abordagem mais colaborativa da política externa. Esse é o dilema que temos agora.

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