Colunas
Clovis Rossi
03/09/2009

A noiva, o aniversário, a kurta, o Afeganistão

Suponho que ainda esteja no ar um anúncio que ironiza a compra de bagulhos horrorosos só porque estão em oferta. Contem cena de uma mulher, a bordo de uma limusine, ainda com o vestido de noiva, no momento em que recebe as passagens para a viagem de lua-de-mel.

"Lua-de-mel no Afeganistão?", pergunta.

O noivo do anúncio bem que poderia ser Igor Gielow, secretário de Redação da Sucursal da Folha em Brasília. Não que ele tenha passado a lua-de-mel no Afeganistão, mas passou, sim, o seu 36º aniversário, no dia 9 de agosto, sozinho em um quartel de hotel de Islamabad, a capital do Paquistão, a caminho do Afeganistão, onde faria uma antológica cobertura do pleito presidencial.

A noiva poderia ser Florencia Costa, 43 anos de idade, 22 de jornalismo, enviada especial de "O Globo" para a eleição afegã, e que conta que, desde o primeiro minuto em que desembarcou em Cabul, sentiu "os olhares incisivos dos homens, alguns bastante indevidos, outros até meio mal-encarados".

Conversei com Igor e Florencia para inaugurar o que pretendo seja uma seção eventual na "Janela", contando o que os jornalistas raramente contam, ou seja, como fazem determinadas coberturas em locais exóticos.

Igor é o que se poderia chamar de "made in Folha", na qual começou aos 18 anos e da qual nunca saiu (na verdade começou na "Folha da Tarde", outro jornal da casa, como repórter de polícia). "Fiz um pouco de tudo: repórter, redator, editor-assistente, adjunto, chefe da Agência Folha, correspondente, enviado especial e, desde 2003, secretário de Redação da Sucursal (e enviado especial esporádico)", conta.

O "esporádico" acho que é lamento, não mera constatação.

Florencia passou 22 dos seus 43 anos no jornalismo, boa parte na cobertura de política e de assuntos nacionais no Brasil, no "Jornal do Brasil", no "Globo", e na "IstoÉ". Em 1991, mudou-se para a então União Soviética, três meses antes do golpe que derrubou o presidente Mikhail Gorbatchev.

Em Moscou, ficou quatro anos, trabalhando para o Jornal do Brasil e para o serviço brasileiro da BBC.

Em 2006, mudou-se para a Índia, primeiro para Mumbai, a ex-Bombaim. Agora está na capital, Nova Delhi.

Resumo da conversa:

Cobrir Afeganistão/Paquistão foi ideia de vocês ou dos respectivos jornais?
IGOR - O formato de cobertura, de ir para os dois lados da fronteira, foi uma proposta minha que o jornal abraçou já há algum tempo. Já tinha coberto a guerra em 2001 nos dois países e no ano passado voltei para o Paquistão para cobrir a transição que acabou levando à queda do regime do general Pervez Musharraff. Sem o apoio do jornal, que sempre incentivou minha "permanência" no tema ao longo dos anos, não teria os recursos (contatos, fontes, interesse mesmo) para poder montar a viagem de agora.

FLORENCIA - Eu sugeri, já que moro em Nova Delhi, a apenas uma hora e meia de voo de Cabul, e também porque já tinha feito a cobertura das eleições do Paquistão em fevereiro do ano passado.

Que providências de segurança vocês tomam?
IGOR - Para um lugar conflagrado, é necessário ter à mão colete à prova de balas e capacete, embora objetivamente você use muito pouco e seja mais uma proteção psicológica. De resto, é o bom senso aliado à informação: conversar com fontes (militares, gente de ONG, gente da área de inteligência), outros jornalistas (sempre há alguém mais experiente que você) e o guarda da esquina (que geralmente sabe mais que os dois grupos anteriores) para saber avaliar o risco. Não tem matéria que valha a pena ser feita se não puder ser transmitida no fim do dia.

(O que Igor está querendo dizer é que jornalista morto ou gravemente ferido não pode enviar seu texto)

FLORENCIA - É muito importante fazer contatos antes de viajar. Antes de sair de Delhi eu entrei em contato com a comunidade de correspondentes estrangeiros que cobrem o Afeganistão, para ter dicas e sentir o clima antes mesmo de ir. É importante se informar o máximo possível sobre o melhor lugar para ficar para facilitar a cobertura e ter segurança. Por exemplo: eu fiquei numa "guesthouse" [pensão, em tradução livre], muita boa para jornalistas porque foi montada por quem entende do assunto: um jornalista inglês veterano de cobertura no Afeganistão desde a invasão soviética [1979/89]. Fica bem no centro de Cabul, perto de tudo e com infraestrutura para jornalistas, como acesso a internet, venda de cartão para recarregar o celular -e com gerador funcionando porque os apagões são frequentes. Foi fundamental para a cobertura estar num lugar assim.

É indispensável contratar um auxiliar local? Quanto custa?
IGOR - Depende do lugar. Em Israel/Palestina nunca utilizei, no Líbano não utilizei. Mas no Paquistão, e ainda mais no Afeganistão, o cipoal de idiomas impenetráveis te obriga no mínimo a um tradutor. E nesses lugares todos, os tradutores acabam sendo "fixers", ou seja, um faz-tudo (ajuda a marcar entrevistas, descolar telefones, arruma carro etc). Um bom "fixer" em áreas com noticiário quente sai por US$ 150-200/dia, chegando a um piso de US$ 50 para um serviço inferior num lugar sem tanta importância. O teto depende do seu veículo: para televisões ocidentais, o "fixer" não sai por menos de US$ 500 por dia.

FLORENCIA - Eu acho fundamental ter uma pessoa local que fale o pashtun [a principal etnia afegã], principalmente quando você vai por pouco tempo, não conhece o lugar, não consegue se comunicar na língua deles. Foi a minha primeira vez no Afeganistão. Os afegãos da elite falam inglês, mas para conversar com o afegão comum, nas ruas, é preciso se comunicar na língua deles. E também é importante sair com alguém que conheça os lugares e saiba onde e quando ir de forma mais segura.

Dizer "sou jornalista brasileiro" significa algo por lá?
IGOR - Além da cara de incompreensão seguida de "Ronaldinho", "Kaká" e sorrisos, não muito. Ajuda porque você não é imediatamente "o inimigo", o representante do Ocidente-Satã. As pessoas realmente te veem mais como neutro. Mas do ponto de vista de abrir portas é uma desgraça. O sujeito vai sempre preferir falar com o americano e o europeu antes. Até você explicar o que é "São Paulo", já perdeu. Há exceções, lógico, que decorrem dos contatos que você monta ao longo do anos.

Além dos riscos óbvios que todos correm nesse tipo de situação, o fato de ser mulher é um risco adicional?
FLORENCIA - Acho que sim porque a mulher continua sendo bastante visada, mesmo depois de quase oito anos de fim do regime do Taleban. Mas ao mesmo tempo o fato de ser mulher abre portas que talvez sejam mais difíceis para os homens, como a aproximação das mulheres afegãs. Elas são muito curiosas e tentam se aproximar. No dia da eleição, por exemplo, eu estava numa zona eleitoral entrevistando as pessoas que tinham ido votar e uma mulher de burca tomou a iniciativa de se aproximar de mim para conversar, quando geralmente elas são mais arredias.

Li no Globo que você não usou burca mas um traje indiano. Teve problemas? Olhares indevidos?
FLORENCIA - Eu vestia a chamada kurta (blusa indiana larga bem comprida, até o meio da coxa ou até os joelhos). Eu sempre saía com o xale cobrindo os cabelos. Uma afegã havia me dito que estrangeira não precisa cobrir os cabelos, que os afegãos consideram as estrangeiras diferentes e, portanto, não há a cobrança de andar coberta como as afegãs.

As mulheres que trabalham por lá --jornalistas e de ONGs-- dizem brincando que há três "gêneros" para os afegãos: o masculino, o feminino e as estrangeiras. Mas eu não vi as jornalistas estrangeiras saindo pelas ruas sem o véu. Preferi não lançar 'moda' e segui o exemplo das colegas. No dia da eleição quase não tinha mulher na rua, devido ao clima de medo com os ataques do Taleban. Eu eu era uma das poucas que andavam pelas ruas de Cabul. E mesmo com o véu cobrindo os meus cabelos os homens olhavam muito, alguns pediam para ser fotografados do meu lado, e tentavam encostar a mão na minha mão. Sempre tinha um malandrinho tentando encostar sem querer, mas esse comportamento eu já conheço da Índia, outra sociedade na qual os homens não tem muito contato com mulher e por isso, quando veem uma estrangeira -que tem fama de liberal -, voam em cima. Alguns falavam coisas em pashtun que eu obviamente não entendia.

Isso tudo me deixou um pouco intimidada no início em Cabul. Não sabia se estava vestida apropriadamente, se estava infringindo algum código de conduta local. Na verdade os olhares indevidos são bastante comuns na Índia, onde eu vivo. Então, já estou de certa forma acostumada. Mas em Cabul foi mais intenso e ainda por cima com aquele clima de tensão nos dias da eleição. Depois do segundo dia eu resolvi relaxar.

Outra coisa que eu aprendi na Índia e coloquei em pratica em Cabul foi não encarar os homens nos olhos quando cruzava com eles na rua. Aqui nessa parte do mundo mulher que cruza o olhar com um homem está se insinuando. Já levei muita passada de mão na perna na Índia quando andava nas ruas porque eu não sabia disso. Até que aprendi o truque de colocar óculos escuros. Eles não sabem se você esta olhando para eles ou não. E no meu caso, sendo jornalista, eu tenho que olhar as pessoas, observar os mínimos detalhes. Não dá para abaixar a cabeça, abaixar o olhar o tempo todo.

JANELINHAS

Morreu como filmou

É clichê, mas não há como escapar dele: a vida imitou a arte no caso do fotógrafo e cineasta francês Christian Poveda, relata o jornal "Le Figaro".

Poveda havia terminado um filme sobre a guerra de gangues em El Salvador (chamadas "maras"), que deveria estrear dia 30 de setembro. Mas o próprio realizador não poderá ver o filme nas telas: foi assassinado com uma bala na cabeça em Tonacatepeque, localidade rural ao norte da capital salvadorenha.

Tinha 54 anos e seu filme, "La Vida Loca", retrata os dois lados da violência, o das gangues mas também da polícia na luta contra elas. Poveda, segundo o "Figaro", "sublinhava que as autoridades negligenciam as condições sócio-econômicas que empurram os jovens salvadorenhos para a criminalidade".

"Vida de cão"

É o título de anúncio institucional da Anistia Internacional preparado por Marcelo Lourenço, publicitário brasileiro que está há 10 anos em Portugal. O filme mostra o régio tratamento a um cão e, em seguida, gente buscando comida no lixo, após o que a voz de Joaquim de Almeida, talvez o mais famoso ator português, diz: "O problema não é ver animais que vivem como pessoas. É ver cada vez mais pessoas que vivem como animais" --não por acaso um tema velho no Brasil, mas que só agora "começa a preocupar seriamente os portugueses", diz Lourenço.

O link é http://www.youtube.com/watch?v=6REsvusYBAo.

De pai para filho

O presidente Lula, ao visitar o Gabão em 2004, disse ao ditador Omar Bongo: "Quero aprender como ficar 37 anos no poder como você".

Omar ainda ficou mais cinco anos no posto. Morreu este ano, mas nem por isso o sobrenome Bongo ficou no sereno: o filho, Ali Bongo, acaba de ter sua vitória eleitoral confirmada pelas autoridades eleitorais, com 41,73% dos votos.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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