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Clovis Rossi
07/09/2009

As drogas ganharam a guerra. E daí?

"The Observer", que vem a ser a edição dominical do "Guardian", publicou belo editorial sobre as drogas. Suas duas primeiras frases bastam para definir todo o espírito da coisa: "Em junho de 1971, o presidente norte-americano Richard Nixon declarou uma guerra às drogas. As drogas ganharam".

É significativo que idêntico espírito tome a edição julho/agosto da revista "Nueva Sociedad", editada pela Fundação Friedrich Ebbert, da social-democracia alemã, e dedicada essencialmente a temas latino-americanos (www.nuso.org).

O tema central é "Drogas na América Latina - Depois da guerra perdida, o que [fazer]"?

Que a guerra foi perdida parece evidente. A tese é reforçada, no "Observer", em artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que basicamente reproduz a argumentação da comissão que ele integra ao lado de dois outros ex-presidentes (o colombiano César Gavíria e o mexicano Ernesto Zedillo).

Assim: "Depois de décadas de sobre-vôos, interdições e ataques às fábricas de drogas na selva, a América Latina permanece o maior exportador mundial de cocaína e maconha. Está produzindo mais e mais ópio e heroína. Está desenvolvendo a capacidade de produzir drogas sintéticas em massa".

Fica claro pois que o enfoque militar/policial não produz resultados significativos - ou, pior, só tornou mais grave o problema.

Para complicar as coisas, há o fato de que toda a legislação internacional que buscou fornecer o marco legal para controlar as drogas tem um século de vida (desde a Comissão sobre o Ópio de Xangai, de 1909). O documento mais recente e mais abrangente, a Convenção Única sobre Estupefacientes, já vai fazer meio século (é de 1961).

É natural, nesse cenário, que cresçam as vozes propondo a legalização das drogas, tão audíveis como as que as que insistem no proibicionismo.

É um erro, diz Juan Gabriel Tokatlian, talvez o maior especialista latino-americano no assunto, professor da Universidade argentina de San Andrés.

"Depois de muito tempo creio que é essencial superar em primeiro lugar o debate, estéril e ideológico, entre proibição e legalização".

Reforça, em recente artigo para a Folha de S. Paulo, o dinamarquês Bo Mathiasen, representante para o Brasil e o Cone Sul do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime:

"A aparente contradição entre legalização ou não legalização tende a tirar a discussão do foco realmente fundamental e que, em última análise, revela muito mais convergências do que divergências: a busca por uma abordagem equilibrada entre as ações de prevenção, de tratamento e de repressão ao crime organizado".

Tokatlian é mais específico: "O razoável é colocar a discussão em termos do estabelecimento de regimes regulatórios modulados. Regimes porque devem cobrir o amplo espectro de atividades e fases do fenômeno da droga (desde a demanda até a oferta, além de outros componentes direta e indiretamente ligados ao fenômeno).

Regulatório porque se requer uma forte intervenção dos Estados em geral, para fixar as regras, os procedimentos, os mecanismos e as normas para lidar melhor com essa questão. E modulado porque é preciso desagregar cada droga de acordo com seu prejuízo ou perigo e estabelecer o regime regulatório específico, em vez de genérico como se se tratasse de produtos idênticos".

De fato, há uma desproporção colossal entre usuários de cocaína e de maconha, de acordo com os dados apresentados em "Nueva Sociedad" pela pesquisadora chilena Lucía Dammert: seriam 165 milhões os consumidores de maconha no mundo todo, 10 vezes mais que os 16 milhões que usam cocaína. Vinte e quatro milhões consomem anfetaminas.

Luiz Eduardo Soares, que foi secretário nacional de Segurança, no início do primeiro governo Lula, apresenta outros números, sempre em "Nueva Sociedad", sobre a diferença de riscos para a vida envolvidos na questão das drogas. Informa que, no Rio de Janeiro, morrem por ano menos de 100 pessoas por consumo excessivo de cocaína.

Mas cerca de 65% dos mais de 6 mil crimes letais que ocorrem todos os anos no Estado "têm relação direta ou indireta com o tráfico de drogas". Dá, portanto, 4 mil mortes/ano pela violência associada ao narcotráfico.

Parece evidente, pois, que o ponto principal do debate está voltado para a violência relacionada ao tráfico, por sua vez associada ao proibicionismo, como acreditam os defensores da legalização

"Nosso problema não são as drogas; é o tráfico - e só existe por causa da penalização", acha Luiz Eduardo Soares.

A tese é tentadora, admito. Mas o texto de Lucía Dammert apresenta uma comparação que abalou minha crença nela: no mundo todo, os mortos por uso de drogas são 200 mil. As vítimas do tabaco - legalizado há muito tempo- são cinco milhões ou 25 vezes mais.

Legalizar as drogas, como é legalizado o tabaco (e, de quebra, o álcool), não levaria a uma explosão de consumo?

Se a guerra está perdida, parece longe, no entanto, o desenho de uma estratégia capaz de recuperar a iniciativa e vencê-la.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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