Colunas
Clovis Rossi
14/09/2009

A (des)Unasul

A reunião dos ministros de Relações Exteriores e de Defesa da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), a realizar-se terça-feira, dia 15, em Quito vai precisar de uma dosagem cavalar de "medidas de confiança" para não terminar em mais um fracasso, como a recente da cúpula de Bariloche, ou em mais um documento anódino.

Explico: "medidas de confiança" é o codinome que o governo brasileiro conseguiu vender a seus pares na tentativa de superar o impasse gerado pelo acordo Colômbia/Estados Unidos, pela qual os Estados Unidos usarão bases na Colômbia supostamente para combater o terrorismo e o narcotráfico, atividades hoje umbilicalmente ligadas.

Como não havia a menor chance de ou pôr a Colômbia no banco dos réus ou convencer os países que mais criticam o acordo (Venezuela, Equador e Bolívia), a diplomacia brasileira idealizou a colocação de um tijolinho de confiança após o outro, até dissolver a crise --ou anestesiá-la na pior das hipóteses, para evitar a destruição da Unasul, cuja preservação é a grande prioridade do governo Lula.

Houve até avanços, que devem se materializar em Quito, no diálogo entre o Equador e a Colômbia, de relações rompidas desde que a Colômbia bombardeou uma base das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em território equatoriano.

É óbvio que falar de "união", como está no nome do conglomerado, quando dois dos 11 integrantes nem têm relações diplomáticas é impraticável.

Que "medidas de confiança" são indispensáveis é igualmente óbvio. Se a discussão ficar apenas em torno do acordo Colômbia/Estados Unidos, não tem jogo. O chanceler colombiano, Jaime Bermúdez, já disse, uma e outra vez, que qualquer discussão, na Unasul (ou em qualquer outro foro), não vai incidir sobre o acordo. Do ponto de vista colombiano, é assunto encerrado.

Como a Unasul decide por consenso, não por voto, insistir com o assunto é convidar ao dissenso e, portanto, à paralisia do conglomerado sul-americano.

Um dos anfitriões, o chanceler equatoriano Fander Falconi preparou um documento para seus colegas que gira exatamente em torno de criar medidas de confiança. Incluem mecanismos de cooperação, com o objetivo de "reduzir ao máximo os riscos e incertezas que possam existir sobre temas de segurança".

Medidas de confiança incluiriam, em tese, a garantia colombiana de que o acordo com os Estados Unidos não prevê ações fora da Colômbia. É uma garantia óbvia: nenhum acordo prevê, preto no branco, que o país "x" está autorizado a invadir o país "y" a partir do território de "z". Óbvio, não?

Depois, se e quando ocorrer a invasão, encontra-se uma desculpa qualquer para explicar porque a garantia dada não funcionou.

O problema, portanto, não é a garantia; é a aceitação ou não dela pelos governantes que mais ferozmente se opõem ao acordo. O boliviano Evo Morales, por exemplo, afirmou domingo, em Madri, que "onde há bases dos Estados Unidos há golpes militares".

Seus ministros vão aceitar, em Quito, a explicação colombiana de que não se trata de bases norte-americanas mas de bases colombianas que militares dos EUA podem usar?.

O documento Falconi tem como segundo eixo que a América do Sul demonstre capacidade de resolver seus problemas de segurança "de forma interna e endógena".

Aqui, será a vez da Venezuela se mostrar ou não confiável aos olhos da Colômbia. No sábado, em entrevista ao jornal espanhol "El País", o presidente Hugo Chávez reincidiu no erro de tratar as Farc (Forças Armadas Revolucionária da Colômbia) como "insurgentes", em vez de dizer o que de fato são, narcoterroristas.

Se a América do Sul pretende enfrentar, com ou sem os Estados Unidos, a questão-chave da segurança, que é o crime organizado e o tráfico de drogas, é fundamental que todos os seus países aceitem que as Farc são parte relevante do problema e não podem merecer tapinhas nas costas como lhes dá Chávez com frequência.

A menos que se possa acreditar em Chávez que diz que, ao tratar as Farc como insurgentes, apenas sugere a negociação para resolver o conflito interno colombiano, em lugar do combate militar hoje predominante e próprio para lidar com terroristas, que é o rótulo americano-colombiano para o grupo.

Tudo somado, parece improvável que a confiança surja tão rápida e fortemente a ponto de permitir um documento igualmente forte. O mais lógico é imaginar uma saída pelo genérico: sugerir, como diz o outro anfitrião, Javier Ponce, ministro equatoriano de Defesa, "um intercâmbio de informações e verificação de estratégias, manobras, capacidade militar, orçamentos e acordos bilaterais". Mas, atenção, Ponce deixa claro que "todos os convênios, não apenas entre Estados Unidos e Colômbia, entram no processo das medidas de confiança mútua", o que significa que os acordos entre a Venezuela e a Rússia estarão na pauta.

No sábado, é bom lembrar, Chávez apareceu na televisão para dizer que vai comprar mísseis russos. E foi preciso: tem alcance de 300 quilômetros (ou seja, apontam diretamente para o vizinho mais próximo, a Colômbia, se se deixar de lado o Brasil com o qual Chávez não tem contencioso). "E nunca erram", acrescentou o teatral presidente da Venezuela.

Vai ou não ser preciso uma dosagem cavalar de confiança mútua para evitar mais um fracasso da Unasul?

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

FolhaShop

Digite produto
ou marca