Colunas
Clovis Rossi
26/10/2009

Uruguai sepulta um fantasma

Como a eleição de domingo não conseguiu definir o futuro presidente uruguaio, o resultado que parece mais importante é o sepultamento do fantasma da ditadura.

Ou, mais exatamente, a rejeição em plebiscito da revogação da chamada "Ley de Caducidad", que retira da Justiça e deixa em mãos do Executivo a decisão de processar ou não aos responsáveis por violações aos direitos humanos durante a ditadura do período 1973/85.

Na prática, implica em não acertar contas com o passado. Ou, como preferiu o ex-presidente Julio María Sanguinetti, o primeiro democraticamente eleito após a ditadura, "o país olha para o futuro e não para os fantasmas do passado".

Esse tipo de atitude é sempre polêmica, qualquer que seja o país que a adote. No próprio Uruguai, a rejeição à revogação da lei se deu por pequena margem (grosso modo, 52% contra 48%).

Tendo a concordar com a análise do espanhol José Ignacio Torreblanca (Conselho Europeu de Relações Internacionais), em texto publicado ontem pelo jornal espanhol "El País", mas voltado para o caso da Rússia.

"Sem uma análise honesta da história do terror de Estado soviético, a Rússia não terá presente nem futuro", escreveu Torreblanca.

É claro que não dá para comparar o "terror de Estado" soviético com o uruguaio, mas violações aos direitos humanos não se medem por quilo.

Logo, do meu ponto de vista, analisar o que aconteceu na ditadura seria saudável, mesmo que se considere exagerada a frase de Torreblanca.

A maioria dos uruguaios preferiu voltar a um modelo de convivência assim descrito pela socióloga Liliana de Riz, em recente artigo para a revista "História Política": "A moderação e a busca de consensos é um traço distintivo da política uruguaia, que sobreviveu à maior polarização social das últimas décadas, à crise mais recente e ao realinhamento partidário".

Dessa moderação, diz bem o fato de dois dos candidatos representarem os extremos da polarização dos anos de chumbo: José "Pepe" Mujica, o ex-guerrilheiro, que roçou a maioria absoluta no primeiro turno, e Pedro Bordaberry, filho de Juan María Bordaberry, que, embora eleito democraticamente, acabou iniciando a ditadura que seria continuada pelos militares.

Que a campanha, mesmo assim, tenha sido tranquila, parece indicar um grau de moderação difícil de imaginar, por exemplo, na vizinha Argentina.

É razoável supor que contribuiu para a aceitação da "Ley de Caducidad" e sua anistia implícita o fato de que os dois principais responsáveis pela ditadura já sofreram punições judiciais. Bordaberry, o pai, está em prisão domiciliar, por sua idade e saúde abalada, e o general Gregorio Álvarez, seu sucessor, acaba de ser condenado a 25 anos de prisão pelo assassinato de 37 opositores entre 1977 e 1978.

Presos os principais fantasmas, a maioria dos uruguaios escolheu ignorar os demais.

Oposição, enfim

Na Itália, o Partido Democrata, principal da oposição a Silvio Berlusconi, elegeu seu novo líder. Trata-se de um ex-comunista, Pierluigi Barsani, que obteve algo em torno de 53% dos votos. O PD elege seu comandante em pleito direto, ao contrário dos partidos brasileiros, que preferem conchavos fechados.

Votaram mais de 3 milhões de italianos, o que dá mais ou menos 6,5% do total de eleitores (47 milhões). Equivaleria, no Brasil, a quase 8 milhões. Seria, suspeito, mais que a soma de filiados de carteirinha de todos os partidos políticos tapuias.

Quem sabe agora a oposição reage de uma maneira mais incisiva aos escândalos que marcam a gestão e a vida pessoal de Berlusconi.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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