Colunas
Clovis Rossi
29/10/2009

É o Paquistão, estúpidos

Há pouco menos de dois anos, conversei, em Davos, com o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai. Ele traçou um retrato de seu país que não combinava, em absoluto, com o que toda a mídia internacional pintava, então como agora.

Chegou a dizer que os afegãos faziam suas festas, sim, cantavam e dançavam, sim. É bem provável que seja verdade. Guerras, ainda mais guerras irregulares como a que se desenvolve naquele país, não duram as 24 horas do dia nem há combate em todas as partes a todos os momentos.

Mas o mais instigante da conversa nem foi esse retrato. Foi a sua afirmação de que o problema do Afeganistão não estava nas suas fronteiras mas além delas. Em nenhum momento usou a palavra Paquistão, o vizinho, mas era obviamente a ele que se referia.

Durante muito tempo, achei que era conversa fiada. Talvez não seja. A sucessão de atentados no Paquistão, nos últimos 30 dias, dão uma clara indicação --e apenas a mais recente-- de que o problema regional está mais no Paquistão do que no próprio Afeganistão.

Ou, se se preferir outra formulação: parece impossível estabilizar o Afeganistão sem antes (ou ao mesmo tempo) estabilizar o Paquistão. O inverso talvez não seja tão verdadeiro assim.

O que definitivamente me convenceu de que Karzai não estava apenas sacudindo o problema de seus próprios ombros foi a análise de Richard Haas para o Washington Post. Haas é presidente do Council on Foreign Relations, talvez o mais badalado centro de estudos sobre política externa dos Estados Unidos e um dos mais badalados do mundo, além de ter trabalhado no governo George Walker Bush (admito que não é uma grande recomendação, mas, pelo menos, ele saiu logo).

Escreve Haas: "O grande tema que deveria estar no coração da estratégia afegã dos Estados Unidos é o Paquistão. É nele, não no Afeganistão, que os Estados Unidos têm interesses nacionais vitais. Isso decorre das dezenas de armas nucleares do Paquistão, da presença em seu território dos mais perigosos terroristas do mundo e do potencial para um choque com a Índia que poderia escalar até um confronto nuclear".

Mais adiante, Haas diz que, "certamente, permitir que o Taleban e a Al Qaeda restabeleçam um santuário no Afeganistão tornaria muito mais difícil derrotá-los no Paquistão. Mas o Taleban e Al Qaeda já tem um santuário - no próprio Paquistão".

Enfim, nada de muito diferente do que me disse Karzai há dois anos.

Significa, então, que os Estados Unidos deveriam abandonar o Afeganistão para se concentrar no Paquistão? Não.

Primeiro, seria uma atitude egoísta, como deixa claro o artigo de Haas: "Sem nenhuma dúvida, a situação dos direitos humanos pioraria sob o regime Taleban, mas ajudar as meninas afegãs a terem uma educação, não importa quão louvável seja, não é uma meta que justifica um enorme envolvimento militar dos EUA".

Do meu ponto de vista, a proteção aos direitos humanos é, sim, uma meta imensa, prioritária até, e muito de acordo com os valores que o presidente Barack Obama prometeu restaurar em seu país.

Se, para protegê-los, é preciso "um enorme envolvimento militar" ou se há outras fórmulas, é exatamente a discussão que está em curso na administração Obama.

Segundo, Paquistão e Afeganistão formam um só compacto, de fronteiras porosas.

Dos dois lados dela, vale a análise feita ontem para o jornal "El País" por Marco Mezzera, do Centro Norueguês para a Construção da Paz: "A necessidade mais urgente é que se restabeleça um Estado legítimo e efetivo, e que se dê aos paquistaneses uma democracia com substância".

Claro que é muito mais fácil dizer do que fazer. Mas, se fosse fácil, os oito anos de ocupação militar no Afeganistão e de substancial ajuda ao Paquistão já teriam resolvido o problema.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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