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Clovis Rossi
02/11/2009

O sequestro da informação

Milagros Pérez Oliva, a defensora do leitor, como "El País" (Espanha) prefere chamar sua ombudsman, tratou domingo de um tema que me parece perfeitamente aplicável ao Brasil, razão pela qual compartilho seus pontos principais com o leitor.

O título já diz bastante: é "Retranca informativa".

O que é a retranca? "A necessidade de gerenciar a visibilidade pública levou todo tipo de instituições, empresas e atores sociais a criar ou contratar assessorias de imprensa. Surgiu, assim, um grande aparato de comunicações, externo aos meios [de comunicação], cujo único objetivo é influir e, se puder, condicionar os conteúdos informativos".

Mais: "Esse aparato de influência cresceu nos últimos anos de tal forma que já há, por exemplo, muito mais jornalistas trabalhando em empresas, organismos, bancos e instituições econômicas do que jornalistas encarregados de informar sobre economia nos meios de comunicação".

Bingo. O conceito sobre o aparato se aplica não apenas ao Brasil mas a todo o mundo democrático ou seja aquele em que o fluxo de informações é livre. Não tenho meios de conferir se a quantificação (mais jornalistas nas assessorias de imprensa do que na imprensa propriamente dita) vale para o Brasil, mas minha sensação puramente empírica diz que sim.

Milagros olha o fenômeno menos do ponto de vista dos jornalistas e mais do ponto de vista do interesse público. Explica: "Estamos diante de um novo cenário em que o controle da visibilidade pública se exerce modulando o acesso às fontes informadas, sequestrando informação de interesse público e tratando de canalizar como informação o que é apenas propaganda".

Volto aqui a uma frase do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda no comecinho de seu primeiro mandato: dizia Lula que notícia é aquilo que "a gente" [o governo] quer esconder; o resto é propaganda.

Milagros não está, portanto, dizendo barbaridade alguma. Está constatando o que alguém do outro lado do balcão, caso de Lula, já havia percebido anos atrás.

A constatação de Lula não impede que ele próprio continue tentando vender propaganda como informação, como o fez na semana passada durante evento com catadores de papel. Nele, o presidente deu aula de jornalismo, "mandando" os repórteres entrevistar os catadores, em vez de cumprir a pauta que haviam recebido de seus editores.

A ideia do presidente seria até interessante se não houvesse uma confusão interessada de pautas: ouvir os catadores presentes ao ato seria dar voz aos organizados, que sempre estão um degrau acima da massa, em vez de constatar, na rua, longe dos palácios, que vida de catador de papel é uma vida miserável, desumana. Para tanto, nem é preciso ouvi-los; basta vê-los empurrando carrinhos cheios de papelão e material reciclável como se fossem burros de carga do século 21.

Volto agora ao texto da defensora do leitor de "El País": ela diz ainda que "o jornalista já não está em posição de poder exigir a informação, mas é o gabinete de comunicação que está em posição de concedê-la ou negá-la. [...] Os gabinetes têm a chave da informação e estão em condições de canalizá-la em função de critérios de afinidade ou submissão".

Bingo de novo. Anos atrás, alguns dos jornalistas que cobríamos política batizamos um certo tipo de comportamento de "lei senador fulano de tal" (já morreu, pelo que tiro seu nome da "lei", composta de apenas dois artigos):

Artigo 1º - Jornalista se compra com informação ou com dinheiro; artigo 2º - Não dê dinheiro para quem quer informação nem informação para quem quer dinheiro, porque você perde ambos.

Não há, no Brasil (e vejo que na Espanha está ocorrendo o mesmo), a noção de prestação de contas por parte de agentes públicos ou privados. Posto de outra forma: João dos Anzóis Carapuça detém informação não por ser João dos Anzóis Carapuça mas pelo cargo que ocupa - e sua obrigação é a de prestar contas. Mas ele prefere esconder as contas.

Não se trata aqui de salvar a face dos jornalistas. Há jornalistas que se vendem, sim, assim como há os que amaciam a crítica para preservar a fonte.

Nem se trata de condenar linearmente as assessorias de imprensa, algumas das quais prestam bons serviços não apenas a quem lhes paga mas ao público.

O ponto é constatar que mesmo os que tentam escapar ao que Milagros batizou de "sequestro da informação" sentem-se mais e mais cercados por um aparato de esconder notícia e divulgar propaganda.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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