Colunas
Clovis Rossi
12/01/2010

Argentina, mercado e conspiração

Sou o inimigo público número 1 de teorias conspiratórias. Quando me aposentar, vou até criar o "site" www.odeioteoriasconspiratorias.com.br.

Mas sou obrigado a admitir que o casal Kirchner (a presidente Cristina e seu marido e antecessor Néstor) tem, desta vez, algum motivo para enxergar uma conspiração na crise entre a Presidência e o Banco Central, com participação de uma juíza, que teve muita pressa para decidir sobre um ato de Cristina (a destituição de Martín Redrado da presidência do BC) e pouca pressa para decidir sobre outras duas decisões da mesma Cristina (a que utilizou o rótulo de urgência para o decreto que previa o uso de parte das reservas para pagar a dívida e a que derrubou Redrado sem ter ouvido uma comissão do Congresso, como mandam as regras).

Sobre o conflito em si, remeto o leitor à Folha de domingo (íntegra só para leitores do UOL e do jornal).

Sobre a suposta conspiração (até acho que nem existe uma conspiração propriamente dita mas uma agitação indevida contra a presidente), é forçoso dizer que se está fazendo tempestade em copo d'água.

Primeiro, Cristina não está se negando a pagar a dívida. Está apenas decidindo, legitimamente, de onde tirar o dinheiro para pagá-la.

Mas o que os argentinos chamam de "pátria financiera" chiam como o fizeram antes, na hora do calote de verdade, quase dez anos atrás --aliás com forte eco no Brasil.

Os fundamentalistas do mercado gritaram que, com o calote, a Argentina arderia para sempre no fogo dos infernos, sua economia jamais sairia do buraco, o desemprego chegaria a 120% da população e por aí foi --com eco, repito, em nove de cada dez economistas brasileiros e nove de cada dez colunistas de economia.

O leitor não tem ideia de como foi solitário tentar dizer que não era bem assim. Não foi mesmo. A Argentina saiu da crise, renegociou a dívida, cresceu até bem mais do que o comportadíssimo Brasil etc etc etc.

Depois da renegociação da dívida, até que um outro colunista admitiu ter avaliado mal a coisa toda. Mas não me lembro de um só economista que tenha revisitado suas críticas.

Note bem, caro leitor: não estou dizendo que dar o calote é bom, bacana, produz crescimento econômico, nada disso. Só dizia antes e digo agora que, se um país for obrigado a recorrer ao calote, não quer dizer que vá morrer de inanição por isso.

Agora que nem calote se está tentando aplicar, os fundamentalistas de mercado se rebelam de novo porque entendem que ou o mercado determina tudo o que o governo deve fazer ou o governo está cometendo um crime. Sim, eu sei que, na crise global, a "pátria financiera" correu atrás do governo para evitar uma quebradeira generalizada. Mas esse povo não é exatamente coerente a não ser na defesa cerrada de seus interesses, ainda que a pátria propriamente dita se dane.

O que a presidente argentina fez foi romper o que Luiz Carlos Bresser Pereira chamou, na segunda-feira, na Folha, de "ditadura do Banco Central" (ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1101201006.htm).

Mais ainda, foi romper a ditadura do mercado, cuja eficiência é assim descrita por um dos expoentes da "pátria financiera", chamado Warren Buffett, mega-investidor:

"Observando corretamente que o mercado é frequentemente eficiente, eles [acadêmicos, profissionais do investimento e gerentes de corporações] passaram a concluir, incorretamente, que o mercado é sempre eficiente. A diferença entre tais proposições é noite e dia".

John Kay, do "Financial Times", que registrou a radiografia perfeita do mercado por Buffett, concluiu: "Mr. Buffett faz dinheiro não pela parte que é frequentemente eficiente, mas pela parte que é infrequentemente ineficiente".

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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