Colunas
Clovis Rossi
24/02/2010

Quando o silêncio é cumplicidade

Não foi exatamente o melhor dia o escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sua quarta e última visita, como presidente, a Cuba.

Primeiro porque, na antevéspera, morreu Orlando Zapata, dissidente do regime, defensor dos direitos humanos, operário como Lula o foi, após 85 dias em greve de fome.

Segundo porque os dissidentes tentaram organizar manifestações para o enterro, mas estão sendo duramente reprimidos, conforme denúncia da Comissão de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional, presidida por Elizardo Sánchez, um dos opositores mais respeitados internacionalmente.

"Temos confirmadas ao menos 25 detenções e outras tantas prisões domiciliares, acompanhadas da ameaça de que quem sair de casa irá para a cadeia", disse Sánchez.

Para os dissidentes, a morte de Zapata foi "um crime premeditado" pela ditadura cubana. A reação das autoridades de tratar de bloquear o protesto até em um enterro que se dará a 830 quilômetros de Havana, a capital e por isso a grande câmara de eco em Cuba, só parece dar razão aos opositores.

Torna menos emocional o desabafo de Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de Libertação, segundo quem Lula é cúmplice das violações aos direitos humanos na ilha caribenha, em entrevista publicada hoje pelo jornal "O Globo".

"Respeitamos e amamos o povo brasileiro, mas o governo Lula não deu nenhuma palavra de solidariedade para com os direitos humanos em Cuba. Tem sido um verdadeiro cúmplice da violação dos direitos humanos", disse Payá, outro dissidente cuja voz alcança repercussão internacional.

De fato, silenciar sobre violações aos direitos humanos, ainda mais quando persistentes, não deixa de ser cumplicidade.

Dá para entender que não haja de parte de Lula uma crítica pública- como não houve, de resto, nos governos anteriores pós-redemocratização. A revolução cubana faz parte da memória sentimental da esquerda latino-americana. Um governo que tem raízes na esquerda, ainda que completamente abandonadas, presta homenagem póstuma a essa memória, por meio de seu silêncio. Explica-se, pois, mas não se justifica o silêncio nas conversas privadas.

Não dá para aceitar que um governo democrático pareça dar aval a uma ditadura por ser de esquerda. Não há ditaduras de direita e de esquerda. Há ditaduras. Ponto. Não há direitos humanos de direita e de esquerda. Zapata, se tivesse sido brasileiro dos anos 70, talvez aderisse à luta pelos direitos humanos e, hoje, estaria sendo homenageado por membros do governo Lula. Morre em Cuba, e o governo Lula faz silêncio.

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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