Colunas
Clovis Rossi
23/03/2010

Já houve sangue demais

PARIS - Fui ver o filme francês "La Rafle", que conta a história da detenção de 13.152 judeus residentes em Paris, na noite de 16 para 17 de julho de 1942, inclusive crianças, muitas. O filme, aliás, as transforma em personagens principais, o que só faz aumentar a carga emocional.

Afinal, nunca esqueci uma frase de Ernesto Sábato, o grande ensaísta argentino, quando foi lançada a Associação Avós da Praça de Mayo, destinada a buscar a recuperação de crianças roubadas pelos esbirros da ditadura do período 1976/83. "Nós, adultos, de algo somos sempre culpados", disse Sábato. "Mas as crianças, de que podem ser culpadas?", continuou.

O filme ajuda a entender o ressentimento (para usar uma palavra talvez branda) dos judeus com relação aos europeus em geral e, em particular, aos franceses. Fica escancarada no filme a colaboração da polícia francesa, de alguns civis e do próprio governo da França não-ocupada (mas cúmplice do ocupante alemão).

Os judeus solteiros foram deportados diretamente para Drancy, ao norte de Paris, mas as famílias ficaram no antigo Velódromo de Inverno durante dois dias de indizível agonia, até a deportação para os campos de extermínio/concentração. As crianças foram separadas dos pais.

Não é à toa que, na visita que fizemos os jornalistas brasileiros que cobríamos a viagem do presidente Lula a Israel, na semana passada, ao Yad Vashem, o Museu do Holocausto, a guia, Helen Bosch, nascida no Brasil, dizia, à certa altura: "O mundo calou" [sobre o Holocausto]. "Por que não fizeram nada?".

Diga-se que ela ressalvou dois brasileiros: Aracy de Carvalho Rosa, funcionária do consulado em Hamburgo, que salvou 80 judeus, aos quais deu passaporte sem a letra "J" (de "juden"), com vistos para o Brasil, e o embaixador Souza Dantas, da legação em Paris.

A desconfiança em relação aos europeus torna ainda mais importante a relação de Israel com os Estados Unidos, que entrou em crise também na semana passada. Não que haja hipótese de rompimento assim como não é razoável imaginar que a viagem do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu a Washington e seu encontro com Barack Obama bastem para resolver a questão.

O ponto mais imediato de fricção é a decisão de Israel de construir habitações para judeus em territórios que deveriam ser palestinos, inclusive Jerusalém Oriental, suposta futura capital de um eventual Estado palestino.

É bom ter claro que o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, disse com todas as letras que tais construções são "ilegais", à luz de resoluções da ONU e da Convenção de Genebra.

Mesmo assim, Netanyahu mergulha no mais remoto passado para justificar suas ações: "O povo judeu estava construindo em Jerusalém há 3 mil anos, e o povo judeu está construindo em Jerusalém hoje. Jerusalém não é um assentamento. É a nossa capital".

Com essa mentalidade, que é compartilhada por uma imensa maioria de israelenses, não há saída, a menos, claro, que os palestinos desistam de terras que acham suas.

O filme "La Rafle" mostra ódio aos judeus em estado puro,um sentimento animalesco que passou, embora ainda haja bolsões antissemitas em várias partes do mundo. O que é incompreensível é o ódio recíproco que judeus e muçulmanos se dedicam, esquecendo "1.400 anos de história compartilhada, que inclui momentos belos e dolorosos para ambos os lados", como escreveu nesta terça-feira, para o jornal libanês "The Daily Star", Mustafa Abu Sway, diretor do Centro de Pesquisa Islâmica e professor associado de Filosofia e de Estudos Islâmicos da Universidade Al-Quds em Jerusalém.

Abu Sway lembra que, "de acordo com o Corão [o livro sagrado dos muçulmanos], judeus, cristãos e muçulmanos compartilham a história da revelação e têm profetas e mensagens comuns reveladas".

O professor fecha dizendo sentir-se orgulhoso de poder dizer que "nunca houve uma 'Kristallnacht' no mundo islâmico".

A "Noite dos Cristais" (9 para 10 de novembro de 1938) foi o primeiro ataque em massa aos judeus, na Alemanha e na Áustria, prelúdio ao Holocausto e prelúdio também para "La Rafle" na Paris de quatro anos depois.

Já não houve horror demais, guetos demais, extermínio demais?

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo".

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