Pensata

Eliane Cantanhêde

03/10/2007

O céu não é de brigadeiro

IPM (Inquérito Policial Militar) instaurado pela Aeronáutica responsabiliza cinco controladores de vôo --um suboficial e quatro sargentos-- por uma seqüência de erros e descuidos que contribuíram decisivamente para o choque do Boeing da Gol com o jato Legacy, um ano atrás. O inquérito, confidencial, mas divulgado pela Folha de S. Paulo na última terça, não exime os pilotos americanos do Legacy de culpa. Apenas não pode atingi-los, pois é militar.

Esse IPM foi acolhido pelo Ministério Público Militar, que o transformou em denúncia dos controladores à Justiça Militar, com base no Código Penal Militar. Um dos sargentos foi denunciado por homicídio e os outros quatro, por inobservância de normas e regulamentos --mais especificamente, o descumprimento da ICA 100-12 (Instrução do Comando da Aeronáutica 100-12), que rege o controle aéreo.

Sem julgar o mérito, a Justiça Militar rejeitou a denúncia, considerada "inepta" por não especificar, caso a caso, os ítens da ICA 100-12 (que tem mais de 250 páginas) desrespeitados pelos controladores. Sem isso, os denunciados não teriam como se defender consistentemente das acusações.

O despacho da juíza Zilah Petersen foi assinado na última sexta-feira e chegou ontem à mesa da promotora Ione Souza Cruz, autora da denúncia, que deve entrar ainda hoje com recurso pedindo a retomada do processo. Caso a juíza aceite, o passo seguinte será julgar o mérito das acusações. Caso contrário, a questão poderá ser decidida no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Independentemente dos trâmites legais, o IPM da Aeronáutica é importantíssimo em si, porque se trata de um reconhecimento oficial de que o sistema de controle de tráfego aéreo falhou e que os controladores não estavam, como provavelmente ainda não estão, devidamente preparados para uma tarefa que envolve o risco de morte de centenas de pessoas por vez. No acidente do Gol 1907, morreram 154 pessoas. São 154 famílias atingidas.

Em resumo, diz o IPM que o controlador do Cindacta-1, de Brasília, nem se informou direito sobre o plano de vôo do Legacy, não sabia que previa três altitudes entre São José dos Campos (SP) e Manaus e passou apenas uma, 37 mil pés, para o colega de São José que autorizou o vôo. Esse segundo controlador, apesar de experiente, com mais de 50 anos de idade, sabia das três altitudes, mas lavou as mãos. Ao autorizar os pilotos, repassou a orientação tal como recebeu de Brasília, com uma só. Isso, diz o relatório, induziu os pilotos a acreditar que deveriam seguir sempre no mesmo nível durante todo o tempo. E assim entraram na "contramão", colidindo com o Boeing, que vinha em sentido contrário.

Daí, a sucessão de erros e terríveis coincidências: ao sobrevoar Brasília, onde deveria mudar de altitude, nem os pilotos pediram para fazê-lo, conforme o plano de vôo escrito, nem o terceiro controlador da história, de Brasília, determinou que eles saíssem dos 37 mil pés para 36 mil. Sua tela mostrava claramente o erro, mas ele não viu. Ainda por cima, quando indagado por seu substituto sobre a altitude, disse displicentemente que estava certa. E mais: não atualizou a frequência do rádio, inadequada para a área em que o Legacy estava entrando.

O substituto, quarto indiciado no IPM e denunciado pelo Ministério Público, é acusado de "demora excessiva" para agir. Demorou muito para tentar contato via rádio e, apesar das dificuldades e das claras evidências de que algo estava errado, levou "nada menos que 19 minutos", segundo o inquérito da FAB, entre a sexta e a sétima tentativas de comunicação. Também não tomou as iniciativas cabíveis, como avisar o Cindacta-4, de Manaus, que poderia alertar as aeronaves que estavam na mesma área, caso do Boeing.

O quinto controlador também foi displicente. Ligou para Manaus burocraticamente para avisar que o Legacy estava saindo da jurisdição do Cindacta-1 para a do Cindacta-4, como se nada estivesse acontecendo e o ar fosse de brigadeiro. Não era, como se viu.

Apesar de não comportar o indiciamento nem a denúncia dos pilotos, já que o relatório, o Ministério Público e a justiça, neste caso, são militares e para militares, as conclusões do IPM contêm críticas também à atuação deles. A alegação é a de que, num vôo sob "vigilância radar" e não "vetoração radar", a responsabilidade é dos pilotos. Eles, portanto, deveriam ter questionado a orientação de vôo em São José, ter perguntado sobre o nível de vôo ao passar por Brasília, ter tentado falar com Brasília mais vezes e em menor tempo. Deveriam, também, ter acionado os códigos de falta de comunicação e, por fim, ter visto que o transponder estava inoperante. Sem esse equipamento, o sistema anti-colisão não funcionou.

Esse é um dado fundamental do acidente, mas depende das investigações sob a responsabilidade do Cenipa (o centro de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos), também vinculado à FAB. O relatório final está para ser divulgado. Mas, até agora, ninguém sabe exatamente o que ocorreu com o transponder, nem os próprios investigadores. O mais provável é que, como tudo o que já confirmado até aqui, seja... mais uma falha humana.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

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