Pensata

Eliane Cantanhêde

04/03/2008

América Latina: devassada e em chamas

Não é exagero dizer que as Américas estão vivendo sua pior crise política em décadas, e que o grau de beligerância só vem aumentando desde o final dos anos 1990 --não por acaso depois da posse de Hugo Chávez. Ninguém mais aposta até onde isso pode chegar.

Quem diz, aliás, é o uruguaio Enrique Iglesias, ex-presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) entre 1988 e 2005: "Este é o momento mais complexo que já vivi na América Latina nos meus 50 anos de convivência formal com os países da região", lamenta ele, hoje na Secretaria Geral Ibero-Americana, com sede em Madri.

O culpado número um desta vez é o presidente da Colômbia, Alvaro Uribe, que passou por cima de todos os pilares das relações internacionais e invadiu o território do Equador para aniquilar um acampamento das Farc, o grupo guerrilheiro que há 40 anos atazana os governos constituídos da Colômbia.

Como operação militar, foi um "sucesso". O ataque colombiano resultou na morte de pelo menos 17 guerrilheiros, com um importante troféu: Raúl Reyes, o segundo na hierarquia das Farc e também seu porta-voz internacional.

Um sucesso, porém, que custou muito caro. Como operação política, foi o mais retumbante fracasso dos últimos tempos, pois jogou Uribe num isolamento agudo na América Latina. Até os moderados Brasil, Chile, Argentina e Peru condenaram a Colômbia. Pior: além de isolado entre seus pares, Uribe teve um único e solitário apoio: justamente dos Estados Unidos.

Aliás, do governo George W. Bush, o mesmo que atropelou a ONU e invadiu unilateralmente o Iraque sob falsos e descarados pretextos. Uribe, assim, corre o risco de ficar com o carimbo de Bush da América Latina...

Com Bush defendendo solitariamente Uribe, e Chávez ameaçando deslocar 10 batalhões do Exército para a fronteira com a Colômbia em solidariedade ao Equador, o clima é tenso e perigoso. E aí entra o Brasil, o maior e mais importante país da América do Sul e também o fator moderador de crises no continente.

O esforço brasileiro se desenvolve em várias frentes: 1) arrancar um "mea culpa" denso e convincente da Colômbia; 2) garantir que o Equador aceite esse pedido de desculpas, se e quando for feito; 3) neutralizar o belicoso Chávez; 4) desautorizar a intromissão dos EUA.

Ou seja: o objetivo é tratar da crise como bilateral (entre Colômbia e Equador) e retirar dela o caráter regional e principalmente internacional. Tudo que ninguém quer, no Palácio do Planalto e no Itamaraty, é que a tensão degringole para uma crise entre os EUA (padrinhos da Colômbia) e a Venezuela (madrinha do Equador).

Resolvidos esses primeiros impasses - se, de fato, forem resolvidos - aí, sim, haverá clima para cuidar do outro lado da moeda: a desenvoltura das Farc nos países ao redor da Colômbia. Se nada justifica que a Colômbia viole o território do Equador, nada pode explicar também que as Farc tenham guarida dentro do(s) país(es) vizinho(s). Afinal, trata-se de um movimento narcotraficante que ameaça o governo constitucionalmente eleito do país.

Invadir fronteiras é imperdoável. Mas apoiar guerrilhas de outro país é também uma forma de invasão. Ao Brasil, à região e ao mundo não comporta defender o ilegal contra o legal. Nem defender invasões de qualquer categoria.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

FolhaShop

Digite produto
ou marca