Pensata

Eliane Cantanhêde

08/08/2008

Guerra

Confirmou-se o temor de que o próprio comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira, e o diretor do Departamento de Ensino e Pesquisa, general Paulo César Castro, comparecessem ao ato convocado pelo Clube Militar do Rio em desagravo a torturadores do regime militar, agora sob a ameaça de virem a ser processados. Essa ameaça partiu de setores do próprio governo: foi o ministro da Justiça, Tarso Genro, quem assumiu as articulações para a revisão da Lei da Anistia, de quase 30 anos atrás.

Cesário é a maior autoridade militar no Rio de Janeiro. Ele e Castro são generais-de-Exército da ativa, ou "quatro estrelas", o que significa que estão no topo da hierarquia militar e integram o Alto Comando da Força.

Deram, portanto, um tom e uma importância institucional a um ato que deveria ser apenas de militares da reserva. A coisa mudou de figura.

Isso gera um ciclo perigoso: Genro puxou o governo - e, portanto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - para uma guerra entre esquerda e direita; o Exército considerou "revanchismo" e, agora, parte para o confronto explícito. Isso não costuma dar boa coisa. Os radicais dos lados se enfrentam. Lula deveria dar um basta já.

Quem reagiu à tese de revisão da Lei de Anistia, discutida no e sob o patrocínio do Ministério da Justiça, foi o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Depois de viajar para Recife no mesmo avião com o comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, Jobim falou pelos militares e contra a iniciativa do conterrâneo Tarso: "Não haverá mudança na Lei da Anistia (...). Não existe hipótese de você rever uma situação passada".

Na avaliação do governo e de setores militares, Jobim tinha conseguido, assim, neutralizar a apreensão e até irritação no Exército. Ledo engano. A reunião do Clube Militar, com altas patentes da ativa, põe lenha numa fogueira que estava se apagando.

Para minimizar a presença dos dois generais e de seus eventuais comandados, inclusive outros generais de duas ou três estrelas, companheiros da ativa sugeriram que, se eles insistissem mesmo em ir, ao menos fossem sem farda, para não comprometer a Força institucionalmente com a manifestação. De fato, os dois compareceram de terno e gravata. Mas isso ameniza a foto, não a situação.

O comandante Enzo Peri tentou minimizar a manifestação, dizendo, em conversas informais, que a Força só poderia ser responsabilizada se o encontro fosse, por exemplo, no Clube do Exército de Brasília, que é vinculado ao Comando. Promovido e realizado no Clube Militar do Rio, deveria ser considerada "coisa da reserva".

Essa agremiação não é vinculada ao Exército, mas tradicionalmente tem servido para que oficiais da reserva verbalizem irritações, descontentamentos e reivindicações que ou são vedadas ou são inconvenientes para o pessoal da ativa. Com a ida dos dois generais do Alto Comando, essa divisão, porém, foi para o espaço.

Na mesma linha de moderação, o general Enzo - que viajará novamente com Jobim no próximo domingo, para a Amazônia - tem dito que não há nada comprometedor contra o governo nos e-mails trocados entre dirigentes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) com referências a políticos e ministros brasileiros.

Os e-mails, divulgados em Bogotá justamente no dia da audiência pública de Brasília sobre a Lei da Anistia, poderiam ser mais um fator de beligerância entre o lado militar e o lado esquerdista do governo. Para o comandante, porém, pelo menos o que saiu até agora dos e-mails não diz nem prova nada.

Os seus comandados reunidos no Rio pensam diferente. Para eles, o que o que saiu até agora diz e prova muita coisa contra o governo que quer reabrir a Lei da Anistia para punir militares, mas paga indenizações milionárias para os militantes de esquerda que, na versão deles, sequestraram, mataram e roubaram bancos. Alguns deles em altos postos do próprio governo.

Enfim, Tarso Genro abriu uma avenida enorme de crise, os militares entraram nela e ninguém sabe como sair. Genro errou ao puxar para o governo a revisão de uma lei que tem três décadas. E os militares erram, gravemente, ao enaltecer figuras como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Reclamar da iniciativa de Genro, vá lá. Enaltecer torturador é o fim da picada. O Exército Brasileiro poderia, e deveria, passar sem essa. Aliás, sem ambas.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

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