Pensata

Eliane Cantanhêde

24/06/2009

Uma reflexão

Em meio a essa avalanche de escândalos no Senado, aumento da gripe suína, reabertura dos documentos do Araguaia e grave crise no Irã, um caro amigo jornalista pede licença e me envia, na volta das férias, uma mensagem de bater fundo no coração: e aquela menininha austríaca de quatro anos que era massacrada pela tia e pela prima todo dia e ninguém falava nada?

Pois é, meu caro leitor, minha cara leitora. Enquanto você, eu e cada vez mais gente gritamos contra os crimes dos outros, talvez estejamos nos esquecendo dos criminosos muito mais próximos de nós e até mesmo de perceber os nossos próprios eventuais "crimes".

Ótimo que estejamos todos dirigindo energias para um país melhor e contra deputados, senadores e funcionários que dilapidam o erário para encher os próprios bolsos, que têm a desfaçatez de criar atos secretos para cometer os maiores abusos achando que jamais serão descobertos e que se sentem donos do Congresso --a Casa que é do povo.

Mas não podemos ser valentes contra eles à distância e covardes diante de brutalidades que estão ali na nossa cara. Agora, depois da menininha Sophie morta, com um grave ferimento na cabeça e antigas cicatrizes pelo corpo, não falta quem venha relatar o quanto ela era torturada pela tia e pela prima, enquanto o pai suíço tentava inutilmente levá-la de volta e a mãe nem se sabe onde estava.

E onde estava o vizinho, a vizinha, o amigo, a amiga, o zelador, o padeiro, o visitante do prédio quando a menina gritava por socorro, desesperada, impotente, frágil, desamparada, nas mãos dos seus algozes?

Quantos de nós já nos vimos numa situação parecida, mas tapamos bocas, olhos e ouvidos? "Não temos nada a ver com isso." "Não se mete!" "Quer confusão com o fulano?"

Quem ouviu e não fez nada não deveria jamais sentar-se a um computador para xingar Sarney, Renan, quem quer que seja. Quem é covarde para defender crianças abusadas e mal tratadas não deve ser valente com os poderosos distantes, quase abstratos.

É preciso também alertar as crianças nas escolas para que saibam como se defender e tenham canais seguros para fazê-lo, sem risco de retaliações ainda piores. Como é preciso campanhas educativas para anular de vez aquela ideia arraigada em algum canto de nós de que pai, mãe, responsáveis têm o direito de espancar crianças sob o pretexto de "educá-las".

Teremos muito tempo ao longo do ano para discutir a crise do Senado, para falar de política, para trocar idéias sobre o mundo, mas eu não poderia simplesmente ignorar o grito do meu amigo (quem sabe ele não foi uma vítima?) e também me calar diante do drama --e da dor-- de Sophie. Ela é um exemplo, uma aula, uma reflexão. Se queremos um país melhor, temos de ter também comportamentos melhores, de ser pessoas melhores.

Proteger as crianças contra a violência, inclusive a doméstica, é também uma obrigação do Estado, de seus órgãos e de seus agentes. Mas também é sua. Se você sabe e ouve maltratos de crianças indefesas, não se omita. Grite! Denuncie! Salve as milhares, talvez milhões, de Sophies que existem por aí. Estará fazendo tanto ou mais do que jogar os Agaciel Maia na lata do lixo.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

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