Pensata

Eliane Cantanhêde

28/10/2009

Mixórdia moral e olimpíada imoral

Quando o Rio foi escolhido para as Olimpíadas de 2016, comemorei como tudo mundo e particularmente como brasileira e carioca. Mas já alertando que não ia ser fácil. Aí, choveram e-mails me chamando de pé-frio e dizendo que sou sempre do contra.

Bem. Desde então, o que o mundo, a gente brasileira e os pobres cariocas estamos assistindo no Rio é uma Olimpíada cruelmente diferente da festa que se imagina para 2016.

Num resumo rápido, porque não haveria espaço nem tempo para tudo, vamos aos fatos (e às imagens): ladrões derrubando a tiros um helicóptero da polícia; as pessoas se jogando no chão em meio aos tiroteios; a foto tétrica de um homem morto dentro de um carrinho de supermercado; os mais de 40 assassinatos na guerra de quadrilhas; a jovem mãe que carregava um bebê de 11 meses e morreu com um tiro nas costas; a mocinha de 18 anos estrangulada pelo namorado viciado em crack.

Se tudo isso é chocante, nada pode ser comparável ao que aconteceu com o líder do AfroReggae Evandro João da Silva, que reúne num mesmo personagem e num mesmo crime toda a complexidade e toda a simbologia da violência na Cidade Maravilhosa e no Estado do Rio.

Evandro era negro, ou mulato bem brasileiro, vinha da favela, se esforçava para ajudar os meninos como aquele que um dia ele próprio fora, tinha a utopia de articular uma saída negociada para a violência. Foi morto a queima roupa por bandidos, vítima da violência que ele tentava combater tão pacificamente. Foi abandonado agonizante pelos policiais que passaram em seguida e nem sequer lhe deram atenção. Foi roubado, humilhado, tratado como um nada e morreu ali, jogado na sarjeta.

No final, os policiais agiram como ladrões dos ladrões, deixando livres os bandidos e roubando os pertences da vítima, numa confusão de posições e numa mixórdia moral difícil de entender e muito mais difícil ainda de explicar ao mundo.

Afinal, a quem os atletas e os espectadores deverão temer: aos bandidos que matam a sangue frio ou aos bandidos fardados que são pagos para controlar os bandidos que agem livremente? À criminalidade ou ao Estado?

Lula trata a Olimpíada como questão de obras e de verba - ou de "merreca", como ele diz - mas isso é apenas uma parte da história. Aliás, a menor e a mais fácil de resolver. O resto é que são elas.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

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