Pensata

Fernando Canzian

03/09/2007

Faroeste

A vida sobre duas pernas de Gilmar Aparecido Reis, 28, acabou há um ano, em agosto de 2006, por causa de um enorme e manjado buraco na BR-364, estrada cuja conservação é de responsabilidade do governo federal.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Corredeira do rio Madeira, onde ficarão as usinas de Santo Antônio e Jirau
Corredeira do rio Madeira, onde ficarão as usinas de Santo Antônio e Jirau

"Vínhamos em seis no carro. O motorista desviou daquele buraco, que ainda está lá, mas não viu que saía uma carreta pelo outro lado. Capotamos". Agora, Gilmar está deitado em um sofá e paralisado do peito para baixo. O acidente esmigalhou a quarta e a sexta vértebras de sua coluna.

Gilmar não trabalha mais em uma serraria local, onde ganhava mais de R$ 1.000 ao mês. Hoje, recebe R$ 450 mensais da Previdência e terá de se mudar, com a mulher e o filho de 6 anos, da sua casa em Mutum, a 165 km ao sul de Porto Velho, em Rondônia.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Gilmar Reis (com a mãe e o filho) sofreu acidente na BR-364
Gilmar Reis (com a mãe e o filho) sofreu acidente na BR-364

Mutum, onde residem cerca de 400 famílias, vai desaparecer do mapa no ano que vem, quando será inundada pelo represamento do rio Madeira, onde estão previstas as construções das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.

As duas obras podem ser as maiores do governo Lula, com investimentos de R$ 28 bilhões para a geração de 6.450 MW de energia a partir de 2013. Várias empreiteiras e grupos estão interessadíssimos no projeto.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Mutum, com 400 famílias, deve desaparecer com a inundação provocada pelas usinas
Mutum, com 400 famílias, deve desaparecer com a inundação provocada pelas usinas

A poucos metros da casa de Gilmar mora o casal Alcides Lima e Maria Conceição Uchôa, ambos com 44 anos. Eles têm um salão de cabeleira improvisado sobre uma palafita, bem em cima de um barranco que se precipita do acostamento da pista onde Gilmar se acidentou. Estão ali há quatro anos e também terão de sair por causa da inundação.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Alcides Lima e Maria Uchôa devem perder o local onde moram na beira da BR-364
Alcides Lima e Maria Uchôa devem perder o local onde moram na beira da BR-364

Alcides é garimpeiro no rio Madeira. Está nessa vida desde 1982. Um dos seus trabalhos, que lhe rendeu um braço quebrado, é mergulhar até 30 metros no fundo escuro e barrento do Madeira com uma mangueira de ar na boca. Com um duto nas mãos, suga a lama (e eventualmente ouro) do leito do rio por períodos de até cinco horas sem vir à superfície.

Como sua casa não está sobre um terreno, mas em uma área suspensa sobre pedaços de madeira com um igarapé atrás, Alcides não tem a menor idéia se receberá alguma indenização para deixar o local.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Zartino Carneiro corta carne antes de salgá-la em seu sítio nas margens do rio Madeira
Zartino Carneiro corta carne antes de salgá-la em seu sítio nas margens do rio Madeira

Apesar de todas as indefinições e mudanças que a chegada das obras causam, Rondônia e sua capital, Porto Velho, estão ansiosas pela chegada das usinas. Fazem campanha por elas em outdoors e em adesivos colados nos vidros dos automóveis.

Porto Velho é uma cidade de 380 mil habitantes. Menos de 45% têm água encanada e apenas 3%, coleta de esgoto. Na região, 36% da mão-de-obra está desempregada ou atua em atividades precárias. Por causa das usinas, a expectativa é que mais 50 mil a 100 mil pessoas corram para a cidade atrás de uma oportunidade.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Gervásio Soares teve melhora nos negócios em Porto Velho com aumento do Bolsa Família
Gervásio Soares teve melhora nos negócios em Porto Velho com aumento do Bolsa Família

Hoje, capital e região vivem, basicamente, da pesca no Madeira, do garimpo, do comércio ainda incipiente e dos salários e pensões pagos pelo poder público. Há também a extração de madeira, legal e ilegal, e a pecuária e a soja, com seus incêndios monumentais que devastam a olhos vistos a Amazônia.

Para tentar contornar um eventual caos com as usinas, a prefeitura de Porto Velho, administrada pelo PT, obteve R$ 545 milhões em verbas do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) para infra-estrutura. Foi um dos maiores valores repassados a um município no governo Lula.

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Trecho abandonado da estrada de ferro Madeira-Mamoré, construída no início do século
Trecho abandonado da estrada de ferro Madeira-Mamoré, construída no início do século

Só a expectativa de mais dinheiro entrando na cidade já provocou um boom imobiliário em Porto Velho, com aumentos de 30% nos preços de terrenos e imóveis e suspeitas de negócios escusos.

Quando a reportagem visitou a cidade, o prefeito Roberto Sobrinho (PT) foi acusado publicamente, em discurso do deputado Valter Araújo (PTB) na Assembléia Legislativa, de ter recebido R$ 3 milhões em propinas para liberar um novo shopping em área de preservação ambiental. Sobrinho nega as acusações.

Tudo é ainda muito recente. Na prática, os negócios em Porto Velho mal começaram.

E o buraco que aleijou Gilmar segue aberto.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

FolhaShop

Digite produto
ou marca