Pensata

Fernando Canzian

22/10/2007

Cada um com sua cruz

Duas semanas fora do Brasil, entre Argentina e EUA, faz pensar que a vida dos brasileiros poderia ser bem melhor em infinitos aspectos. Mas pior em outros.

Na Argentina, o governo do presidente Néstor Kirchner vem preparando uma arapuca para eleger sua mulher, Cristina, presidente do país no próximo domingo, 28.

A inflação extra-oficial calculada pelas províncias (Estados) disparou e "roda" a mais de 20% ao ano. Mas o Indec (o IBGE argentino) diz que os índices mostram preços anualizados de "apenas" 8%.

É com base nesse percentual (8%) que são corrigidos salários e títulos da dívida pública. Ou seja, há um "calote branco" que tunga rendimentos e salários. Como a dívida cresce menos do que deveria, Kirchner distribui dinheiro a rodo aos pobres, cacifando a mulher-candidata.

Emergencialmente, Kirchner convocou empresários para congelar e baixar preços (empresas brasileiras no país dizem que a situação é "assustadora") e ordena que fundos de pensão argentinos tragam de volta dinheiro que têm no exterior. O objetivo é tentar segurar o dólar, que quer disparar como reflexo da inflação.

Cristina Kirchner deve vencer as eleições. E os argentinos, pagar o pato mais à frente com o descontrole inflacionário ou com uma recessão para contê-lo.

Nos EUA, os problemas são de outra natureza, mais ligados à "relevância" do beligerante George W. Bush.

Na semana passada, enquanto o número de soldados americanos mortos no Iraque se aproximava de 4.000, Bush fez um discurso estranho. Chamou a imprensa e, em meio à falação, disse que "continua relevante" no mundo.

No dia seguinte, quando ninguém deu muita bola, Bush afirmou que o programa nuclear do Irã pode acabar desembocando na Terceira Guerra Mundial. Alguns analistas da TV fizeram uma interpretação sombria: um bom ataque ao Irã de fato tornaria Bush outra vez relevante.

Por falar em relevância, foi com grande eloquência que o ministro brasileiro Guido Mantega (Fazenda) usou o termo, na semana passada, em Washington, para dizer que o FMI está se tornando "irrelevante". Emendou afirmando ser "uma ironia" os EUA estarem "em crise" enquanto o Brasil está "muito sólido".

O fato de a Bolsa brasileira ter despencado quase 4% na sexta-feira e o risco-Brasil ter saltado 6% não mereceu comentários do ministro. Nem que o Brasil, com apenas 1% do comércio internacional, contribuirá com apenas 2,6% do crescimento mundial de 2007. Enquanto os EUA "em crise" darão um impulso de 20%, e a China, de 15%.

Cada país com a "relevância" --e o governo-- que merece.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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