Pensata

Fernando Canzian

05/11/2007

Sem gás e sem vergonha

O Brasil já começa a sentir uma crise que o setor privado esperava para daqui a dois anos. E que o governo simplesmente achava que não existiria.

A ameaça de uma falta maior de gás acompanhada de importante aumento de preços da energia tornou-se realidade. As filas de taxis no Rio atrás do produto na semana passada são uma prova cabal de que o governo, ao usar a tática do avestruz e do otimismo exacerbado, coloca em risco a continuidade da recuperação econômica.

Nada pode ser mais fatal, no campo da infra-estrutura, do que a falta de energia em uma sociedade e economia predominantemente elétricas.

Diante desses questionamentos há mais de um ano, o governo, como sempre, agiu com otimismo em vez de tomar providências.

Palavras do presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Maurício Tolmasquim, responsável pelo Plano Decenal do Ministério das Minas e Energia, à Folha em 07 de maio de 2006, a propósito da reportagem "Gás põe plano energético do país em xeque":

"Não existe nenhum risco de racionamento, e o preço da energia não deve aumentar, pois a oferta já foi contratada e os contratos são de longo prazo".

As duas premissas iniciais de Tolmasquim mostraram-se erradas, e a sociedade vai pagar o preço da falta de ação na sua área.

Em reportagem ainda mais antiga, de 12 de junho de 2005, a Folha enumerou os problemas que se avolumavam e que precisavam ser atacados:

1) das 27 concessões autorizadas entre 2000 e 2001 para a construção de novas usinas hidrelétricas (que demorariam quatro anos para ficar prontas), nenhuma saiu ainda do papel. O problema principal é a falta de uma política clara de preços da energia para remunerar esses novos investimentos;

2) sem mais energia hidrelétrica, a partir de 2006 o aumento do consumo deveria ser coberto pela geração das termelétricas, que dependem de gás para operar;

3) além de o abastecimento de gás boliviano estar em xeque, há consenso de que os preços vão subir devido ao aumento de tributação no país vizinho e pela tendência natural de alta do petróleo (nesta semana, o óleo está chegando a US$ 100 o barril);

Com uma veemência peculiar, e sem vergonha de empulhar a sociedade com projeções erradas e falta de ações concretas, tanto Tolmasquim quanto a hoje ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, rebateram à época todos esses pontos e afastaram completamente a ocorrência de problemas na área. Não é o que estamos vendo.

O setor privado vem dizendo há anos que o modelo do governo Lula para a energia corre o risco de naufragar. Prova disso é que, nos leilões para oferta futura de energia hidrelétrica (onde as empresas se comprometem a gerar determinada quantidade para vender no futuro), o setor privado tem mostrado apetite mínimo.

Prefere se comprometer mais com a geração a partir das termelétricas e acaba obrigando as estatais da área a aceitarem o preço que o governo quer pagar --considerado muito baixo. Resumindo: o governo tem uma política que desestimula o investimento privado e, aparentemente, obriga as estatais a arcar com subsídios.

A longo prazo, isso deve necessariamente resultar em menos investimentos e, com o tempo, em pressões cada vez maiores sobre os preços.

No governo, as reclamações das empresas privadas são vistas como "choradeira". As autoridades acreditam que as empresas estão atrás de lucros maiores ao reclamar do modelo de Lula para o setor. Pode ser.

O fato é que já falta gás. E os preços da energia vão acabar subindo. Pior: não por causa da remuneração de novos investimentos, mas pela ausência deles.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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