Pensata

Fernando Canzian

04/02/2008

A longo prazo, todos mortos

Foi impressionante a velocidade e "extraordinariedade" com que os principais líderes políticos e chefes de organismos multilaterais cuidaram da recente turbulência financeira.

Ela atingiu o centro do capitalismo, os EUA, e tem potencial para reverberar por todo o mundo. Isso é certo.

Mas a crise é certamente também o produto de uma montagem bastante gananciosa de posições especulativas. Montadas sobre fundamentos sólidos, como os grandes lucros de empresas e um longo período de crescimento global. Mas, de novo e no fundo, a crise emergiu da ganância e da especulação.

Os números falam por si: enquanto o PIB global soma hoje cerca de US$ 50 trilhões, o papelório que gira nos mercados chega a US$ 170 trilhões, e cresce cada vez mais rápido do que a economia real.

Sem que se soubesse com mais precisão dos seus eventuais desdobramentos, os "donos do mundo" acorreram na hora para tentar evitar uma degeneração mais profunda.

Enquanto o Federal Reserve (o BC dos EUA) decepou os juros, George W. Bush enviou rapidamente para o Congresso um pacote de socorro de US$ 150 bilhões. O FMI produziu relatórios extraordinários sobre o tema e seu chefe, Dominique Strauss-Kahn, falou pelos cotovelos sobre como debelar a ameaça.

Megaempresários, economistas, especialistas e outros "istas" de várias correntes também produziram opiniões sobre o tema. Tudo no sentido de evitar uma crise que, de resto, poderia demorar a sumir, mas que faria parte de um ciclo que talvez corrigisse distorções que só tendem a piorar com o tempo.

Enfim, optou-se por uma urgência que inexiste em outras áreas, em políticas de médio e longo prazos distantes do bolso, da ganância e da especulação.

Há anos alguns poucos e com menos apelo vêm alertando para crises realmente maiúsculas que podem abater o planeta e sua economia global de forma devastadora e definitiva.

Diz-se que a China tem 20% da população do planeta e apenas 7% das reservas de água. Mais de 300 milhões de chineses já estariam consumindo água "não-segura". É assustador imaginar como isso vai acabar quando o país, a passos rápidos, atingir um estágio de desenvolvimento e consumo de Primeiro Mundo. E quando a maioria dos emergentes também puder chegar lá.

Como se não lhes dissesse respeito, os EUA também seguem como os maiores poluidores, consumidores, endividados e fabricantes de carros e casas enormes do mundo. No Brasil, a "commoditização" do setor exportador, com grãos e terras valendo ouro, permite assistirmos à devastação inexorável da Amazônia. Enquanto isso, pólos antes gelados derretem e derretem, ano atrás de ano.

Tudo lentamente, mas já chegaremos lá.

O consolo, como diria John M. Keynes, é que "a longo prazo estaremos todos mortos". Ou, na versão mais popular de Jim Morrison, "daqui ninguém sai vivo".

Enquanto isso, o negócio talvez seja mesmo viver de bolso cheio. Nisso, os "donos do mundo" não vão desapontar.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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