Pensata

Fernando Canzian

17/03/2008

Passaporte para o aborrecimento

Pouco antes da virada do ano, comentei em O Brasil que não vai para frente como o setor público brasileiro emperra, com um misto de incompetência e descaso, a vida dos coitados dos contribuintes que o sustenta.

Hoje, como não poderia deixar de ser, novo aborrecimento. Dessa vez maior do que o outro, quando mais uma vez o setor público atravessou meu caminho.

Fui renovar meu passaporte, Via Crucis a que está submetido um número cada vez maior de brasileiros. Para começo de conversa, fiz o agendamento há meses, pois não havia data disponível anterior a ontem. Esperei. No período, perdi duas oportunidades de viagens a trabalho pela falta do documento.

Ao chegar no local de atendimento ontem, dentro de um shopping, com toda a documentação e meia hora antes do horário, surpresa:

"Estamos sem sistema. Não há previsão de atendimento por enquanto. O sr. pode me dar o papel do agendamento que o chamaremos pelo nome", disse um funcionário à porta do escritório da Polícia Federal.

"OK", respondi resignado e me encaminhei bovinamente para o banco ao lado. Trazia um grosso livro comigo, já esperando o chá de cadeira.

Logo depois, uma fila começou a se formar na porta do escritório da PF. Levantei para ver o que estava acontecendo. Agora, um agente da PF dava orientação diferente da passada havia 30 minutos: era preciso entrar na fila para reagendar o atendimento.

"Qual a razão da fila", perguntei, "se vocês primeiro disseram que chamariam pelo nome e têm inclusive os papéis de agendamento com vocês?"

"É, mas agora você tem de entrar na fila", responde rispidamente o agente da PF.

Diante da minha cara aborrecida, mas calada, ele completa:

"Cara feia pra mim é fome".

Como tinha acabado de comer um pão-de-queijo com café, respondi que não era fome, mas indignação o que sentia com a qualidade do atendimento. Disse que gostaria de escrever sobre aquela desorganização, sobre a demora de meses, e me apresentei como jornalista. O agente sequer quis pegar meu cartão de visitas. Resmungou algo como "jornalista é tudo igual, pior que..." algo que não entendi. Pedi para anotar seu nome e função e argumentei que aquilo não era tratamento adequado.

Depois, quando a poeira assentou, o agente ainda me disse, na frente de todo mundo, que eu devia ter ligado antes e me apresentado como jornalista. Pois ele pessoalmente poderia ter resolvido o problema do meu passaporte em questão de dias.

Fiquei pensando no que os outros, interessados em um passaporte, estariam pensando agora. Respondi a ele que não queria privilégio algum, mas um atendimento compatível com a carga de impostos que sustenta o setor público brasileiro.

Uma chateação só. Tem vezes que dá vontade de fugir do Brasil. Mas como é preciso um passaporte para isso, reagendei um novo e certamente infeliz encontro com o setor público para esta semana.

*

A propósito: só não publico o nome deste senhor, agente da PF em São Paulo, pela simples razão de esta ter sido uma questão pessoal. Inclusive ofereci a ele meu e-mail para que, depois de publicada a coluna, pudesse explicitar as razões para o tipo de atendimento que proporcionou aos contribuintes em uma chuvosa manhã paulistana, onde todos ali devem ter perdido horas no trânsito e na fila. Para nada. Ele não quis saber. Talvez estivesse com fome...

*

Informação adicional: os últimos dez anos de aperto no setor privado brasileiro foram um passeio para o setor público, protegido onde está pela estabilidade no emprego e pelo orçamento frouxo.

No Poder Judiciário, o gasto com salários no período subiu quase seis vezes mais do que a média do funcionalismo federal. Os tribunais e suas extensões também empregaram 28% mais gente.

No Legislativo, a despesa com salários aumentou duas vezes mais do que a média do funcionalismo, e 45% mais pessoas foram empregadas. Já o Executivo empregou 5,5% mais funcionários.

Entre os servidores no Legislativo, a média salarial hoje é superior a R$ 9.700. No Judiciário, R$ 10.300. No Ministério Público, R$ 12.000. No Executivo, o salário médio é superior a R$ 4.400.

Já um agente da PF como o que me atendeu ontem ganha entre R$ 6,6 mil (início de carreira) a R$ 10,2 mil.

Compare tudo isso com a média salarial dos ocupados hoje no Brasil, que pagam, em última análise, o salário do funcionalismo: menos de R$ 1.200.

Para quem tiver curiosidade, no link abaixo constam todos os salários da administração pública federal (o último boletim é de jan.2008):

http://www.servidor.gov.br/publicacao/boletim_estatistico/bol_estatistico_08/Bol141_jan2008.pdf

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

FolhaShop

Digite produto
ou marca