Pensata

Fernando Canzian

10/04/2008

O inferno gelado dos pobres

WASHINGTON - O FMI (Fundo Monetário Internacional) recorreu ontem aos elementos naturais para explicar a situação da economia internacional. Para o Fundo, o globo e seus habitantes estão hoje entre o "gelo" ( a expectativa de um forte desaquecimento) e o "fogo" (a volta, com força, da inflação).

Trata-se de uma situação nada usual essa atual.

Pressões inflacionárias normalmente ocorrem por excesso de consumo. Nesses casos, os governos usam seus bancos centrais para aumentar os juros da economia. Grosso modo, ao tornar financiamentos aos consumidores e empresas mais caros, e o custo de oportunidade de investir menor, os BCs apertam o torniquete e a economia esfria. Com menos gente saindo às compras, a inflação tende a ceder.

O inusitado na economia global de hoje é que essa lógica direta ganhou novas complicações. E elas têm relação direta com o que o mundo dos economistas sempre perseguiu, ou diz ter perseguido: a melhora nas condições de vida dos mais pobres.

Dessa vez, não é um aquecimento acima dos níveis normais que provoca um aumento considerável nos preços. Ao contrário, tanto os países desenvolvidos quanto os emergentes devem crescer menos em 2008. Os mais ricos, 1,3% (metade do resultado de 2007). Os em desenvolvimento, 6,7% (8% no ano passado).

Mesmo assim, a inflação entre ricos e pobres tende a fechar o ano nos níveis mais elevados em mais de uma década.

Por trás dessa enorme mudança está, em grande medida, a saída de milhões de pessoas de populações em várias partes do mundo (sobretudo na Ásia, América Latina e África) de uma situação de miséria que persistia há séculos.

Nos últimos cinco anos, graças a um crescimento global excepcional e a políticas responsáveis, vários países antes encrencados aproveitaram a maré crescente para se ajustar e adotar medidas para estabilizar suas economias. Deu certo para muitos, e seus milhões de habitantes puderam entrar no mercado de consumo. E continuam a fazê-lo.

Ocorre que a primeira necessidade que um ex-miserável pretende suprir é forrar o estômago. Depois, começa a consumir um ou outro produto. Quanto mais "rico" vai se tornando, mais sofisticadas se tornam suas demandas.

Imagine, por exemplo, os efeitos nos mercados mundiais de carnes quando milhões de asiáticos que antes só comiam arroz passam a ter dinheiro para comer um bife uma vez ou outra. Ou nas commodities metálicas quando esses mesmos milhões resolvem comprar um eletrodoméstico. Ou, mais à frente, um automóvel.

Nos últimos 36 meses, os preços dos alimentos quase que dobraram no mundo, provocando pressões inflacionárias que não existiam. Outros preços de commodities minerais têm ido no mesmo caminho, só piorando o quadro inflacionário.

Não seria prudente descartar, portanto, um aperto a mais de bancos centrais de vários países (como age agora o BC brasileiro ao ameaçar elevar os juros) para conter essa nova alta de preços --provocada, em boa medida, pela melhora das condições de vida dos mais pobres.

Mas não é só. A "inflação da barriga cheia" e do "quero um microondas" é apenas uma parte do problema.

Por trás dessa alta meteórica dos preços de alimentos há também um crescente uso de grãos e terras disponíveis para a produção de biocombustíveis em países pobres e ricos. E uma especulação cada vez maior de endinheirados em mercados cujos valores são lastreados em preços de commodities, o que só puxa as cotações para cima.

É cedo ainda para conhecer as consequências e implicações dessa nova realidade. Mas o fato é que, apesar da recente tentativa de melhora, ainda vivemos em um mundo muito imperfeito e ganancioso.

Sempre foi assim. Assim como sempre sabemos quem vai pagar o pato.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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