Pensata

Fernando Canzian

29/06/2008

No Suvaco da Cobra

O Suvaco da Cobra é uma favela imunda e miserável em Jaboatão dos Guararapes, cidade vizinha ao sul de Recife (PE). Absurdo como o próprio nome, é um oásis ao contrário: tem várias lagoas e muito verde, mas tudo é sujo, fétido e salpicado de lixo.

Fernando Canzian/Folha Imagem
Sueli Dumont, 36, 8 filhos e 4 netos, trabalha em lixão para complementar o Bolsa Família
Sueli Dumont, 36, 8 filhos e 4 netos, trabalha em lixão para complementar o Bolsa Família

Milhares de famílias moram no local em casebres caindo aos pedaços. E grande parte delas é atendida pelo Bolsa Família. O principal programa social do governo Lula paga um benefício médio de R$ 85 ao mês a 11 milhões de famílias em todo o país. Só em Jaboatão, 77 mil dessas famílias são beneficiárias.

Há três anos acompanho algumas famílias no Suvaco, especialmente duas: a de Micinéia dos Santos, 36, três filhos, e a de Sueli Dumont, 36, oito filhos. Ambas acabaram de ter o benefício reajustado para R$ 121 ao mês e gastam a maior parte do dinheiro em comida.

A vida dessas duas famílias é uma desgraça. As casas são apertadas, imundas e horríveis. Dormem todos amontoados e apenas sobrevivem, um dia atrás do outro.

Há uma forte discussão em curso no país sobre os resultados práticos do Bolsa Família. De um lado, os que vêem no programa uma espécie de ajuda humanitária e uma porta de saída da miséria. De outro, os que acusam os beneficiados de se acomodar e de não lutar pelo próprio progresso.

Conhecendo um pouco mais de perto (e há algum tempo) a situação de alguns beneficiados, fico, sem a menor dúvida, com a turma dos primeiros. Mas com muitas restrições. Não em relação ao programa em si, mas a respeito de todo o seu entorno.

Fernando Canzian/Folha Imagem
Sala de aula onde estudam 350 alunos, a maioria atendida pelo Bolsa Família
Sala de aula onde estudam 350 alunos, a maioria atendida pelo Bolsa Família

O caso da família de Sueli Dumont é um exemplo de dinheiro mal empregado. Sueli já chegou a receber R$ 290 ao mês em benefícios quando tinha alguns de seus filhos ou na escola ou em programas de "capacitação" de jovens. Três das suas filhas, Késsia, 19, Kássia, 19, e Priscila, 16, fizeram cursos financiados pelo governo e a mãe recebeu dinheiro para mantê-las lá.

Hoje, as três não só estão desempregadas como viraram mães na adolescência. No total, terão quatro novas crianças miseráveis para cuidar quando a última delas, filha de Késsia, nascer daqui a quatro meses. No caso de Kássia, ela não só é mãe de dois filhos como ficou viúva quando o marido foi nadar em um estuário e acabou se afogando.

Os cursos que elas fizeram foram de bordado, cabeleireira e informática. Há dois anos não põem a mão em um computador e o que não falta no Suvaco da Cobra é salão de beleza e bordadeiras. Elas também pararam de estudar para cuidar dos filhos.

Fernando Canzian/Folha Imagem
Casal Pedro e Micinéia recebe R$ 112 do Bolsa Família para manter 3 filhos na escola
Casal Pedro e Micinéia recebe R$ 112 do Bolsa Família para manter 3 filhos na escola

Segundo algumas estimativas, não chega a 2 milhões o total de mulheres no país com mais de cinco filhos. E elas estão concentradas nas regiões mais pobres. É absurdo que não exista um programa complementar focando com lupa essas mulheres --e que possa estancar a reprodução dessa miséria. No caso das três filhas de Sueli, nenhuma pretendia ter filho nessa idade. Apenas aconteceu... Resultado: em três anos e sem querer, a família Dumont pulou de 10 para 14 miseráveis.

Parece haver, porém, luz no fim desse túnel. Embora, de novo, com restrições.

Caso da família de Micinéia Santos: a mãe e o pai, Pedro, cuidam pessoalmente de dar banho e levar caminhando os três filhos Luan, 9, Alan, 8, e Vanessa, 6, à escola local, que tem o sugestivo nome de Novo Horizonte. Uma das condicionalidades para receber o Bolsa Família é manter as crianças entre os livros.

Em todas as vezes que estive com essas crianças, fiz um pequeno ditado e apresentei coisas para lerem. Luan, hoje na quarta série, continua com uma caligrafia péssima, mas já lê bastante melhor. E Alan, na terceira, escreve um pouco melhor que Luan e também lê razoavelmente. Ou seja, estão progredindo, embora muito devagar.

A diretora da escola deles conta que 40% dos alunos que entram na primeira série repetem de ano. A escola não tem professor ou estrutura para aulas de reforço nessa série. Em outro colégio local, onde estudam nada menos que 2.300 crianças e adolescentes, a mesma situação de carência e falta de estrutura.

Fernando Canzian/Folha Imagem
Késsia, 19, grávida; Kássia, 19, viúva com 2 filhos; Priscila, 16, tem 1 filho e não estuda
Késsia, 19, grávida; Kássia, 19, viúva com 2 filhos; Priscila, 16, tem 1 filho e não estuda

Antes de passar por uma reforma recente, as paredes do colégio davam choque por causa de fios desencapados em seu interior e o giz mal produzia riscos nas lousas por causa da umidade. Uma das secretárias do colégio afirma que a reforma foi bem-vinda, mas que os alunos destroem tudo. "Até a maçaneta das portas", diz.

Enfim, apesar de toda a discussão, incongruências e do aparente "enxugar gelo" em torno do Bolsa Família, é fundamental ter em mente que o programa custa por ano apenas 10% do que a parcela mais rica da população embolsa em juros da dívida pública.

Sem olhar para o entorno do programa, porém, é uma enorme incógnita o tipo de cidadão e país que vai acabar saindo disso tudo.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

FolhaShop

Digite produto
ou marca