Pensata

Fernando Canzian

18/08/2008

Brodagem cultural

Não fui ao show de João Gilberto em São Paulo na semana passada. Mas li a respeito. Com estranha curiosidade.

Sabia que alguns ingressos custaram mais que o dobro do que os norte-americanos pagaram, em junho, para ver João no Carnegie Hall, em Nova York. Outros, via cambistas, mais de R$ 1.200.

Apesar do preço, o artista chegou 97 minutos atrasado para o show na quinta. É tempo suficiente para ir e voltar na ponte-aérea Rio-SP. Mas João veio a jato, fretado.

Em noite de dia útil, véspera de dia útil, João jantava enquanto o público o aguardava no Ibirapuera. No dia seguinte, sexta, atrasou mais de uma hora.

Um conhecido foi embora antes da chegada de João na quinta. Era convidado do banco Itaú, patrocinador do show. Achou que não tinha muito a perder. Outro, pagante, reclamou irritado que ele próprio não havia jantado para chegar ao show no horário.

Já para os gringos em Nova York, o brasileiro tardou só cinco minutos. É problema de João e de seu público no Brasil a admiração e o desrespeito recíprocos.

Mesmo assim, não houve, nos dois dias seguintes, comentários na mídia com viés muito negativo a esse respeito. Nem qualquer indicação negativa sobre o show. João Gilberto esteve "maravilhoso" e "perfeito" o tempo todo e em quase todos os meios, impressos e eletrônicos. Pode até ser.

Dos 806 lugares para o show em cada uma das duas noites no Ibirapuera, 300 (quase 40%) foram reservados a convidados. Ministros, candidatos a prefeito e vários artistas estavam lá de graça. Além de muitos jornalistas.

Já em Nova York foram 2.800 lugares, a imensa maioria paga. Nada de turma de "Caras" e o resto.

No Brasil, na condição VIPs em um show disputadíssimo entre os demais, dificilmente o "spinning" dos "formadores de opinião" seria negativo. Ao contrário, foi um resumo da brodagem cultural. Que se auto-alimenta de VIPs, convites, comentários positivos e de reproduções desses mesmos comentários.

Tudo isso seria irrelevante para a imensa maioria, que não viu nada. E que, no fim das contas, faz do artista o que ele é. O problema é o filtro positivo.

É de tirar o chapéu o marketing cultural no Brasil, induzido pela benevolente mídia lapidada pelo setor privado. Tente anotar algo de ruim que sai na mídia sobre a cultura brasileira; ou internacional. O mesmo livro, filme ou show merece sempre grande graça e presença --em todo lugar e ao mesmo tempo.

Na semana que vem teremos mais um exemplo construtivo. Sobram relatos de pessoas se engalfinhando por ingressos para o show que reunirá Roberto Carlos e Caetano Veloso no mesmo Ibirapuera. Vai ser difícil. Outros 40% de convidados (nos mesmos 806 lugares) já têm seu assento garantido.

Para quem não puder ir, e só ler os relatos nos dias seguintes...

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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