Pensata

Fernando Canzian

05/04/2009

Desempregados. E armados

Já havia contabilizado pelo menos quatro casos idênticos nos últimos três meses. Num país como os EUA, onde o fato não é incomum, não dava para julgar até mesmo como leve tendência.

Mas dois novos eventos idênticos ocorreram na semana passada: recém desempregados abriram fogo contra ex-colegas de trabalho. Ou saíram atirando a esmo contra pessoas inocentes.

Nos dois últimos casos, em Pittsburgh (PN) e Binghamton (NY), onde houve um brasileiro entre as 13 vítimas fatais, os atiradores não só estavam bem armados como usavam coletes a prova de balas nos locais dos massacres. Ambos haviam acabado de ser demitidos.

Em Pittsburgh, Richard Poplawski teve uma discussão com a mãe, que acabou chamando a polícia. Ele esperou pelos oficiais ao lado da porta de entrada da casa. Matou três deles, dois com tiros na cabeça, antes de se entregar.

Em Binghamton, Jiverly Wong matou 13 pessoas (entre eles o pernambucano Almir Alves) antes de também tirar a própria vida em um centro para imigrantes.

Wong mal falava inglês até a semana passada, mas ganhou o direito de andar armado em 1996. Estima-se que existam cerca de 250 milhões de armas em circulação nos EUA, para uma população de pouco mais de 300 milhões.

Um colega do antigo local de trabalho de Wong contou tê-lo visto diariamente, e por horas, batendo uma bola de tênis contra uma parede próximo ao cenário do massacre. Wong mantinha essa rotina desde que foi dispensado de uma linha de produção da IBM.

Existem hoje 13,2 milhões de desempregados nos EUA, país onde ser considerado um "loser" (um perdedor) é a pior das ofensas. Do total, mais de 4,4 milhões perderam seus empregos na atual recessão, elevando o nível de desemprego para 8,5%.

Mas a taxa é muito maior entre os que não são brancos (de olhos azuis ou não) e entre as pessoas menos escolarizadas. Ela sobe a 13,3% entre negros; 11,4% entre hispânicos; e 13,3% entre os que não concluíram o equivalente ao ensino médio no Brasil.

Os dois atiradores da semana passada estavam em um ou mais desses grupos.

Tirando as doenças graves e a morte de entes queridos, talvez não exista nada pior para uma pessoa normal do que perder o emprego. Especialmente numa crise deste tamanho, onde não há muito para onde ir.

Com a perda, vai junto não apenas o dinheiro para as contas, mas autoestima e dignidade. Em muitos casos, a pessoa deixa de ser o que era.

Na literatura, uma descrição desconcertante desse sentimento está no conto quase metafísico "O espelho", de Machado de Assis. Nele, um oficial não é demitido, mas perde completamente seu "chão" ao ser obrigado pelas circunstâncias a ficar muitos dias longe de sua rotina, e fora de seu uniforme.

A inquietação é resolvida quando ele se coloca por algumas horas diariamente na frente de um espelho. Vestindo o uniforme, consegue recordar quem realmente é, restabelecendo a calma interior.

No caso do desemprego, o espelho é o pior dos mundos.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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