Pensata

Fernando Canzian

31/08/2009

Além da jabuticaba

Não é só a jabuticaba um produto exclusivo da "Terra Brasilis".

O Brasil tem também coisas esquisitas como depósito compulsório, um nível ínfimo de concessão de crédito ao setor privado e vários bancos públicos.

O compulsório é uma parcela do dinheiro em depósitos de clientes que os bancos são obrigados a recolher no Banco Central. Coisa de R$ 260 bilhões até o agravamento da crise, em setembro de 2008.

Já o crédito é o dinheiro adiantado pelos bancos a empresas ou consumidores para que antecipem gastos mediante o pagamento de remuneração (juro). Trata-se de um importante multiplicador de riquezas.

No Brasil, o total de créditos concedidos ao setor privado como proporção do PIB é ridículo na comparação com EUA e Europa, por exemplo.

Tanto os depósitos compulsórios quanto a baixa exposição do Brasil ao crédito são resquícios do histórico da inflação pornográfica até 1994 (há apenas 15 anos).

Naquele ano, o governo Itamar Franco e o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, fizeram o milagre do Plano Real.

Desde então, só em algumas situações pontuais, de crise, os preços saíram dos trilhos.

O compulsório servia para "enxugar" o excesso de dinheiro em circulação, que alimentava a alta dos preços (mais dinheiro para comprar uma quantidade limitada de produtos gera inflação).

Já o crédito era praticamente impossível de administrar com uma inflação de dois dígitos por mês.

Por último, há bancos públicos como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Nossa Caixa. Antes um esgoto de corrupção, eles vêm se profissionalizando. Mas (marca do atraso) continuam sujeitos às vontades dos políticos de plantão.

Paradoxalmente, essas três anomalias (compulsório, crédito baixo e bancos públicos) ajudaram o Brasil na crise financeira internacional.

Reprodução

Este quadro mostra como o BC liberou (a partir de setembro de 2008) quase R$ 100 bilhões em depósitos compulsórios retidos nos bancos para injetar dinheiro no mercado.

Até julho, o recolhimento compulsório somava R$ 178,8 bilhões. Se não houvesse crise, ele estaria em R$ 297,4 bilhões.

O segundo gráfico revela o papel que os bancos públicos (linha laranja) tiveram na crise.

Reprodução

Ao contrário do setor privado (linha azul), eles pisaram no acelerador da concessão de empréstimos a empresas e consumidores quando a crise apertou.

Não fosse por eles, dificilmente o Brasil teria voltado à rota do crescimento.

O terceiro gráfico mostra uma situação bastante curiosa e coloca um desafio para o governo Lula e o próximo: é o comportamento das vendas nos supermercados, pouco influenciado pelo crédito (pois quase tudo é pago à vista no setor).

Reprodução

O que as barras desse quadro revelam é que mesmo após o agravamento da crise (em set.08), as vendas continuaram a subir. Isso quer dizer que a crise no Brasil foi uma crise de crédito (como no resto do mundo).

Resumo: a crise nos ensina que o Estado brasileiro usou relíquias do passado inflacionário (compulsório, crédito baixo e bancos estatais) para evitar o pior.

Mas coloca o seguinte e grande desafio: em função de sua ainda elevada dívida pública, o melhor negócio para bancos, empresas e cidadãos no Brasil continua sendo emprestar dinheiro para o governo. Via aplicação em fundos remunerados pela taxa de juros do Banco Central.

Por isso, poucos bancos se arriscam no mercado de crédito.

Nos países desenvolvidos, a crise foi maior porque a mamata de financiar um governo perdulário não existia. Daí o desafio (e o risco) dos bancos em procurar ganhar dinheiro emprestando ao setor privado.

Outro aspecto, paradoxal: o fato de o Brasil ter saído mais rapidamente desta crise mostra como desperdiçamos oportunidades e evoluímos lentamente.

Coisa que os países avançados não fizeram, até o ponto do exagero. Como mostra a explosão da crise no setor de crédito deles.

Calibrar o meio termo seria ótimo para nossa economia recém estabilizada.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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