Pensata

Fernando Canzian

19/10/2009

Canibais em Wall Street

NOVA YORK - Há algo de sinistro na forte recuperação do principal mercado acionário do mundo, concentrado na Bolsa de Valores de Nova York, e na comemoração dos que veem nisso um bom sinal.

As forças que atualmente jogam os preços das ações para cima, produzindo valorização de mais de 50% desde março, são deletérias. E parecem não ter como sustentar uma recuperação sadia de lucros e resultados --que, no fim das contas, justificariam a alta do mercado.

São dois os principais vetores que levaram o índice Dow Jones a ultrapassar a barreira de 10 mil pontos na semana passada, algo que não se via há mais de um ano.

1) Gastos brutais e endividamento recorde do governo dos EUA e; 2) Cortes profundos e abruptos em empregos, salários e investimentos no setor privado.

Reprodução
Charge mostra investidor sobre touro (que representa a Bolsa em alta) em meio a desempregados procurando trabalho. Um deles diz: "É um mercado estranho"
Charge mostra investidor sobre touro (símbolo da Bolsa em alta) em meio a desempregados. Um deles diz: "É um mercado estranho"

No primeiro caso, o endividamento favoreceu mais os bancos, que puxaram a alta da Bolsa no segundo trimestre (abril a junho).

O Fed (o BC dos EUA) garantiu em 100% e a custo quase zero emissões de títulos dos bancos. Esse dinheiro barato e livre de qualquer risco foi emprestado a empresas e a consumidores a taxas elevadas, proporcionando forte retorno aos bancos.

Instituições como JP Morgan Chase e Goldman Sachs também vêm ganhando fortunas aplicando o dinheiro barato do Fed em ações e títulos em vários mercados, inclusive em países emergentes como o do Brasil.

Em resumo, a ironia é que o governo e os contribuintes norte-americanos subsidiam esses ganhos, proporcionando aos bancos um dinheiro barato que eles jamais teriam à mão não fosse a crise.

O outro lado dessa moeda é o endividamento público. O déficit fiscal dos EUA bateu em US$ 1,4 trilhão e, proporcionalmente ao PIB, já equivale a 10% --o maior patamar desde 1945.

Mas, se por um lado os bancos e o setor não-financeiro (que também emitiu títulos garantidos pelo Fed) ganham às custas do governo, eles pouco vêm contribuindo para diminuir as aflições dos que, em última instância, vão pagar a conta: os trabalhadores.

Na safra de balanços do terceiro trimestre (julho a setembro) das empresas não-financeiras está claríssimo que a maior parte do lucro têm uma só origem: cortes (de empregos, rendimentos e investimentos).

Ao ter menos despesas fixas e gastos futuros, essas companhias apresentam lucros maiores proporcionalmente ao faturamento, remunerando mais os acionistas e puxando o valor de suas ações para cima. Mas isso tem limite e não há como continuar indefinidamente.

Mais de sete milhões de pessoas perderam seus empregos na atual recessão nos EUA, onde as empresas cortaram 45% mais vagas do que as companhias europeias. Não é por outro motivo que o mercado não se valorizou tanto na Europa.

É como se Wall Street canibalizasse o resto da economia e as finanças públicas atrás de ganhos a qualquer preço. Espremendo lucros maiores de um setor privado cada vez menor e de um Estado agora afundado em dívidas.

Isso não parece bom sinal de nada.

*

Para quem tiver interesse, acabo de lançar um livro no Brasil relatando, em ordem cronológica, os principais eventos da crise financeira mundial a partir da quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008.

"Desastre Global" foi lançado pela Publifolha. Abaixo, o link da editora:
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Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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