Pensata

Fernando Canzian

29/03/2010

Renda, rua e caos

Algumas das maiores cidades brasileiras continuam um nojo.

Só tendem a piorar com a expectativa de que novos consumidores tenham cada vez mais dinheiro em seu dia a dia. E eles vão para a rua.

Isso em um cotidiano de carência de infraestrutura e transporte público e de poucas opções de lazer e cultura. Além de descaso público e policial com o que vai surgindo desordenadamente.

Grandes metrópoles como São Paulo, Rio e Recife talvez sejam os exemplos mais emblemáticos dessa tendência rumo a mais (e rápida) degradação e caos.

Mas, como a Folha mostrou no domingo, cidades médias como Florianópolis (SC), Rio Branco (AC), Cuiabá (MT) e Porto Velho (RO) começam a sofrer dos mesmos problemas de São Paulo.

Rogerio Lacanna/Folha Imagem
Jovens bebem durante a madrugada na rua Augusta, onde bares precários dividem o espaço com prostíbulos, ambulantes e traficantes
Jovens bebem durante a madrugada na rua Augusta, onde bares precários dividem o espaço com prostíbulos, ambulantes e traficantes

No governo Lula, cerca de 30 milhões de pessoas passaram das classes D e E para as A, B e C. A renda média desse pessoal aumentou a um ritmo médio superior a 5% ao ano. Além de mais consumo de bens materiais, eles também querem, obviamente, diversão.

E saem em novas hordas atrás disso. Seja esperando por horas em pontos de ônibus imundos ou dirigindo em ruas cada vez mais impossíveis de trafegar em bizarras noites de fim de semana.

No ano passado, foram emplacados no país 3,1 milhões de veículos novos. Isso redundou em uma quantidade imensa de automóveis usados sendo colocados à venda no mercado. Há cada vez mais gente de baixa renda tendo acesso a eles.

Ninguém pode ser contra isso. Mesmo que a antiga elite socioeconômica que ocupava sozinha um espaço limitado se mostre cada vez mais incomodada.

São Paulo talvez seja o grande exemplo para outras cidades em expansão do que acontece hoje no novo ethos brasileiro. Onde valores e hábitos privados, mais a letargia da administração pública, se reforçam em meio a um volume cada vez maior de gente circulando com dinheiro no bolso.

Para quem não conhece, existe uma longa rua em São Paulo chamada Augusta. Ela é dividida praticamente ao meio pelo espigão que serve de leito para a avenida Paulista.

Nos anos 1960 e início dos 70, um dos lados da Augusta era dominado por playboys endinheirados e lojas mais sofisticadas. Com sua decadência, os anos 1980 e 90 viram florescer na Augusta, do outro lado da Paulista, dezenas de casas de prostituição e moças fazendo ponto nas esquinas. Para o poder público, isso nunca foi um problema.

Agora, algo de muito extraordinário acontece por ali.

Milhares de jovens de todas as classes passam madrugadas inteiras bebendo entre putas e puteiros, bares sujos e precários, casas noturnas um pouco mais sofisticadas, ambulantes vendendo cerveja a R$ 2, espetinhos a R$ 1,50 e traficantes oferendo cocaína nas calçadas a R$ 15.

É tudo desordenado, imundo, caótico e, em muitos aspectos, fora da lei.

Não se trata de criticar os frequentadores, centenas deles visivelmente menores de idade. Mas o fato é que não há fiscalização, policiamento, banheiros públicos ou sequer latas de lixo suficientes para depositar a imundice que fica pelas calçadas esburacadas.

A região da Augusta é mais um ícone da inviabilidade brasileira: algo que floresce com energia e participação popular genuinamente democráticas, mas já com cheiro azedo de degradação. Até se tornar insuportável e ser deixada para trás em ruínas, sina de muitos bairros da cidade.

Pelo menos o povo tenta se divertir por um tempo, embalado nessa onda de crescimento da renda. Enquanto o poder estatal, como sempre, cuida de seus interesses privados, gastando o grosso da arrecadação em salários, aposentadorias e na máquina pública. Só o mínimo vai para infraestrutura, conservação e planejamento.

Enfim, a vida está melhorando. Talvez mais da porta de casa para dentro.

Na rua, há muito espaço para piorar.

Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha Online.

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