Pensata

Hélio Schwartsman

06/09/2007

Conservadorismo patológico

É claro que não sou a favor do assassinato de homossexuais, como alguns leitores sugeriram após ler minha coluna da semana passada. Só não acho que mais leis sejam a resposta para o problema.

Matar já é, na maioria das vezes, crime. Matar uma pessoa apenas por ela ser homossexual pode levar a uma condenação por homicídio qualificado (motivo fútil), que permite até 30 anos de reclusão --a maior pena prevista pela legislação brasileira em tempos de paz.

Se os assassinos de homossexuais permanecem impunes, o problema não está na lei, mas na polícia que não os prende, no júri que não os condena ou no juiz que não os sentencia. (Recente decisão judicial num rumoroso caso envolvendo jogador de futebol dá bem a medida do conservadorismo patológico que ainda assola as fileiras do Judiciário). E acho que a pena máxima está de bom tamanho. Não creio que os imbecis que espancam e matam gays devam ser punidos com mais rigor do que assassinos de criancinhas, envenenadores ou pistoleiros de aluguel.

No Brasil, sempre que temos um problema que não conseguimos resolver, nos pomos a escrever uma nova legislação para tratar do tema. Raras vezes nos empenhamos em fazer cumprir as normas que já existem --e que muito provavelmente dariam conta do recado.

Isso nos remete a uma questão interessante acerca do papel das leis. Por um lado, elas têm como objetivo definir padrões de comportamento para a sociedade. Se desejamos acabar com o preconceito contra negros, por exemplo, baixamos pacotes como o da Lei Anti-Racismo, a nº 7.716/89, em que criminalizamos certas condutas que gostaríamos de ver eliminadas. A idéia é que algumas condenações devidamente propagandeadas produziriam um salutar efeito exemplo.

Só que leis não existem no nada. Elas são também a expressão de certos consensos sociais. Assim, o simples fato de termos elaborado uma Lei Anti-Racismo já indica uma forte disposição da sociedade para combater o preconceito.

O "segredo de Tostines" se explica pelo fato de a sociedade não ser homogênea. Enquanto alguns grupos permanecem teimosamente racistas, parcela significativa já se deu conta de que é moralmente errado definir a cidadania de uma pessoa a partir do nível de melanina que ela produz ou de suas preferências sexuais.

Não chego a negar o papel transformador que leis podem exercer numa sociedade, mas, especialmente num país atrasado como o Brasil, quando uma matéria relativa a costumes se converte em norma jurídica, é porque a tendência já está praticamente consolidada. Se há algo que os nobres parlamentares fazem muito bem é representar os grotões do país. Se a maioria deles passa a considerar determinada prática aceitável, é porque ela já é corrente nos meios da classe média urbana há muito tempo. Sempre haverá, é claro, uma parcela diminuta que recusará a "inovação". É a estes grupinhos que se dirigem os rigores da lei.

Para dar um pouco de materialidade a minhas afirmações, lembro que foi apenas em 2003, com a entrada em vigor do novo Código Civil, que maridos ciosos perderam a chance de pedir a anulação do casamento na hipótese de a mulher não ser virgem e pais rigorosos deixaram de contar com a possibilidade de deserdar filhas "desonestas".

A crer no grande jurista alemão Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), nem vale a pena tentar codificar em lei matérias relativas a costumes. Esse tipo de regulação se dá primeiramente pelos próprios hábitos da população, depois, por decisões judiciais, em nenhum caso pela vontade arbitrária do legislador.

Vamos imaginar que amanhã nosso solerte Congresso, preocupado que é com questões de higiene, determinasse que todo cidadão brasileiro precisa trocar a roupa de baixo três vezes ao dia. Não é preciso curso de astrologia para prognosticar que tal norma cairia como tantas outras no vazio. Seria mais uma daquelas leis que "não pegam", pois seu vínculo com os costumes tende a ser zero.

Daí não decorre que o ativismo judiciário seja uma impossibilidade. Em alguns casos específicos, em especial quando se trata de afirmar prerrogativas que poderão ou não ser usadas, a coisa pode funcionar e eventualmente transformar a sociedade.

O exemplo mais eloqüente é o do caso Roe vs. Wade, julgado em 1973 pela Suprema Corte dos EUA. Ali, a maioria dos magistrados determinou que o aborto era um direito constitucional das mulheres. Muitos americanos, incluindo legisladores, é claro, não gostaram, mas todos os Estados foram obrigados a revogar leis que baniam o procedimento, e clínicas que o praticam puderam ser instaladas em todo o país.

Os impactos de Roe vs. Wade são discutidos até hoje. Há desde sociólogos que atribuem à decisão da Suprema Corte a redução dos índices de criminalidade registrados nos EUA a partir dos anos 90 --quando os bebês não desejados dos anos 70 teriam se tornado jovens criminosos-- até autores que vêem no ativismo liberal de então um dos fatores que levaram, por reação, ao recrudescimento do fundamentalismo religioso de hoje. Seja como for, estamos diante de uma decisão que se mostrou transformadora.

Não é por outra razão que muitos afirmam que o mais duradouro dos estragos provocados por George W. Bush será legar aos EUA uma Suprema Corte bem mais conservadora do que a que encontrou. Ele nomeou para o posto dois dos nove juízes. Há quem tema que, em sua nova composição, o tribunal poderá, inclusive, rever aspectos de Roe vs. Wade.

No Brasil, decisões do Supremo Tribunal Federal não tem nem de longe a mesma repercussão política nem jurídica da Suprema Corte dos EUA, mas é forçoso reconhecer que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve ocasião de exercer enorme influência sobre o órgão ao designar 6 de seus 11 membros. Talvez chegue a sete. O mais recente dos ministros é o conservador Carlos Alberto Direito, cuja nomeação despertou polêmica por ser um 'católico praticante' como ele mesmo se define.

Meu anticlericalismo não supera minha veia democrática. Não é segredo para ninguém que acompanha minhas colunas que eu preferiria um mundo ateu, mas é forçoso reconhecer que não o é. E católicos têm exatamente os mesmos direitos de qualquer cidadão. Não faria sentido excluir alguém do tribunal apenas pelo fato de ele ser católico. (É claro que o fato de Direito ser o que se convencionou chamar de conservador serve para chamar à realidade aqueles petistas que ainda insistem em chamar a administração Lula de progressista, o que nunca foi).

Meu ponto, porém, é outro. É o Vaticano quem coloca Direito em maus lençóis ao exigir de todos os legisladores e homens públicos católicos que façam tudo a seu alcance para dificultar a adoção de leis contrárias à doutrina católica --leia-se aborto, pesquisa com células tronco e vários outros temas que se encontram na pauta do Supremo.

O que o Vaticano diz ou deixa de dizer não é um problema para a maioria dos católicos brasileiros --incluindo outros ministros do STF-- que não hesitam em defender o uso da camisinha mesmo contra os ensinamentos do papa. A questão é que Direito faz parte daquele grupo de católicos realmente devotos, que levam a sério o ordenamento normativo da igreja, incluindo a encíclica "Evangelium vitae" e recentes exortações do papa Bento XVI que reafirmam o dever dos católicos de combater o aborto, a eutanásia etc.

Aqui, Direito terá de escolher entre trair a fé católica ou princípios republicanos como o de que juízes devem julgar de forma isenta e sem prejulgamento. A armadilha, insisto, está no fato de Roma impor a militância antiaborto como um dever externo para católicos, o que coloca eventuais decisões do ministro sobre a matéria sob suspeita de terem sido externamente determinadas e não formadas a partir de convicções pessoais como se passa no caso de ministros ateus, protestantes ou mesmo católicos "light".

Para terminar a coluna com uma ponta de otimismo, vejo com bons olhos o fato de nos preocuparmos cada vez mais em aprovar leis e discutir-lhes a constitucionalidade. Até ontem, no Brasil não se hesitava nem por um instante antes de suspender dispositivos da Carta que dificultavam os ocupantes do poder de cumprir seus objetivos.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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